O que leva você a uma viagem? Va dove ti porta il cuore é meu lema, ou seja, sou levado pelo coração. Agora, estou onde exatamente queria estar: em frente à Casa Rossa, na pequena vila de Montagnola, no cantão de Ticino, na qual o escritor alemão naturalizado suíço, Hermann Hesse, viveu seus últimos 40 anos. Cheguei à Suíça em busca das paisagens que inspiraram a maior parte de suas obras-primas.
Esta é uma daquelas viagens em que predomina o desejo de satisfazer uma necessidade insaciável de alegria, de relembrar minha juventude, quando Hermann Hesse (1877-1962) esteve ao meu lado naquele exato momento em que damos de cara com a realidade, encerrando os idílicos tempos da infância.
Confesso que naquela época outros romances de alta voltagem existencial também se apresentaram como farol, dentre eles os de Willian Burroughs, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregory Corso e John Fante. Era a geração beat que procurava, entre barris de cerveja, a droga máxima para o espírito livre. Mas a literatura de Hesse me cravou mais.
E assim, guiado pela curiosidade, pelas lembranças de seus livros, e pela vontade de viajar, aqui estou.
Mesmo no calor sufocante de meio-dia do ferragosto suíço, continuo ainda estacado em frente ao portão da Casa Rossa. Eu e as estátuas dos deuses gregos Pólux e Castor que ladeiam a entrada e que, sem dúvida, não foram escolhidos a esmo. Na mitologia, esses deuses gêmeos não queriam estar separados e assim passam metade do ano no inferno e a outra no Olimpo. Tal ambivalência se traduz nos livros de Hesse, que sempre entrelaçam o real e o sonho, o sagrado e o profano, o catolicismo e o paganismo, a lucidez e a loucura. A transigência e a transgressão.
Como muitas cidades suíças, Montagnola, a seis quilômetros de Lugano e principal cidade do Ticino, é um vilarejo plantado numa colina e formado por vielas com casas de pedra ou não, cheias de heras e buganvílias, pequenos restaurantes e cafés. A mera vista da vegetação da vila basta para compreender porque Hesse nunca se cansou de incluí-la em seus livros. Bosques se estendem em várias direções, a folhagem cobre as trilhas e musgos, e trepadeiras sinuosas envolvem as pedras.
O silêncio é total, e ali não se vê vivalma. O lugar é quase um personagem de Hesse. “Solidão é independência”, disse certa vez a seu editor. Nessas paisagens teria voado o pensamento do escritor?
Continuo a descer as ruazinhas de Montagnola em direção à primeira casa de Hesse, a ‘Casa Camuzzi’, onde no último andar ele alugou um apartamento. Gostava de ‘casas especiais’, e esta era uma delas. As janelas emolduravam uma paisagem ampla, que incluía as montanhas e o Lago de Lugano. Foi nessa residência que Hesse criou Siddharta’, ‘Demian’, ‘Narciso e Goldmund’, e cujos jardins inspiraram ‘Klingsor’. Foi ainda nos arredores de Montagnola que ele buscou elementos para obras-primas como ‘O Lobo da Estepe’ e ‘O Jogo das Pérolas de Vidro’. Ali encontrou sua ‘hora do lobo’. Os antigos assim diziam por ser a hora em que as pessoas encontram o verdadeiro espírito da liberdade e renascem para outro sentido da vida.
Nos passos de Hesse, faço uma pausa no Grotto del Cavicc, no interior de um bosque, um dos locais preferidos do escritor. Chega-se lá depois de uma boa caminhada para, como ele, saborear queijo fresco de cabra, pancetta, salame, um prato de cogumelos recém-colhidos e salteados em azeite de oliva. Acrescente-se obrigatoriamente polenta de farinha de grão-de-bico, típica da região de Ticino. Tudo ao sabor de um bom copo de vinho da Alsácia.
Tal atmosfera me remete à primeira cidade suíça em que ele fixou residência – Basileia.
Embora o fio condutor para minha viagem a Basileia fosse Hesse, a arte, o design e a arquitetura me atraíram como uma força irresistível para a beleza dessa cidade. Moderna, de vanguarda, vibrante, não por menos é considerada a capital cultural da Suíça.
Cidade fascinante, sobretudo porque se abre a todos os olhares. Ali residem o contraste entre tradição e futuro e, ao mesmo tempo, o contraponto de ser pitoresca, com todos os requintes de uma metrópole.
Localizada na tríplice fronteira com França e Alemanha, se fosse preciso defini-la em apenas uma frase esta seria: não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida do que Basileia.
É desse modo que Basileia se deixa ver. Na harmonia de contrastes convivem desde a mais antiga universidade e o primeiro teatro musical do país, palácios, ruazinhas estreitas e labirínticas, pontes medievais, até museus e edifícios de vanguarda, projetados pelos mais conceituados arquitetos contemporâneos.
E aqui se destacam: o Museu da Cultura, dedicado à antropologia, assinado por Herzog & De Meuron; a Fundação Beyeler, com obras-primas de Van Gogh, Monet, Cézanne, Picasso, Warhol, desenhado por Renzo Piano; o Museu Jean Tinguely, com acervo das principais esculturas de vanguarda deste artista, expoente da arte cinética e do movimento nouveau réalisme, cujo projeto arquitetônico tem o selo do escritório de Mario Botta.
E tampouco passam despercebidas outras construções antigas, em particular aquelas do centro histórico. Um labirinto de vielas e casario nos estilos gótico, barroco e medieval de onde sobressaem altas torres decoradas com afrescos, é fácil notar porque a Unesco colocou o centro histórico de Basileia em sua lista de patrimônios mundiais. Era nesse cenário, que se mantém como no começo do século passado, que Hesse percorria suas ruas e praças.
Minha ideia foi começar um roteiro em plena ação na majestática Marktplatz – praça do mercado – ao lado do City Hall. O edifício construído em 1501 tem um vistoso tom grená, murais e brasões coloridos, altos-relevos, e é encimado por uma elegante torre cujo telhado reproduz desenhos geométricos nas cores verde, vermelho e branco. Em frente a esse belo edifício está o mercado ao ar livre, onde reinam barracas de flores, mudas de plantas, cogumelos, cerejas, peras e pêssegos, e os aclamados produtos de charcuterie. São bons motivos para estender o passeio até a hora do almoço, quando se pode petiscar à vontade, e devorar ali mesmo um substancioso sanduiche de pão integral, frutas secas e sementes, recheado com generosa fatia de queijo fresco e cremoso.
Durante décadas essas construções clássicas mantiveram a região da Cidade Velha de Basileia como sua principal atração, mas Hermann Hesse não era chegado a esse burburinho; ele queria paz para pensar e trabalhar. E como! Na década que viveu em Basileia, mudou de casas por 17 vezes. Uma vez porque o sino da igreja o incomodava de meia em meia hora, outra porque era perto da universidade, e os alunos ruidosos atrapalhavam sua concentração.
Em lugar das vias principais, ele preferia embrenhar-se em ruelas e margear o rio, ao invés de caminhar pelas ruas mais movimentadas, tudo para conseguir o silêncio que o inspirava a pensar. Esta foi uma das razões que o fizeram se transferir para Montagnola, na época uma simples vila rural. Mas de paisagens marcantes.
Viajar, de fato, para a Suíça é pegar muito trem, o que facilita a vida dos viajantes. Incauto, entrei inadvertidamente em um vagão no qual era proibido conversar! De imediato me veio a imagem de Hesse, que iria adorar entrar nesse trem se naquele tempo essa advertência já existisse.
Assim, no maior silêncio, fui para Lugano. Cidade que às vezes parece Itália pela arquitetura lombarda e praças com arcadas, às vezes é Suíça pela organização e paisagens bucólicas. O certo é que as duas características ali convivem harmoniosamente.
Uma viagem a Lugano é muito mais que ‘uma viagem a Lugano’: são muitas, e levam cada viajante de um modo todo particular. Hermann Hesse define, sem mais, tal característica: “aquele que se exercita na procura das pequenas alegrias, descobrirá no seu dia a dia as coisas mais preciosas. Devo ao Ticino esta grande lição”.
Ao falar de Lugano, deve-se começar por descrever seu ingresso na cidade, de preferência vindo de trem. Da estação ferroviária se avista uma cidade arborizada, que beira o Lago Lugano na vizinhança das exuberantes montanhas Bré e San Salvatore.
História, arquitetura e gastronomia se mesclam nessa cidade de pouco mais de 75 mil habitantes. Culta, elegante, luminosa e próspera, Lugano cativa logo de início. No centro histórico restaurado, em calçadões, praças, jardins, vielas estreitas, e outras nem tanto, respira-se um ar deliciosamente latino.
Todas as cidades guardam segredos, e os de Lugano são desvendados quando a tarde chega. Pura transmutação. Antes de tudo, nesse horário a luz do sol acentua a riqueza cromática: tons de terracota, canela, sépia e sombras ressaltam as formas e texturas de edifícios dos séculos 18 e 19, dos palácios barrocos e das igrejas com portais renascentistas. Esse grafismo faz o contraste com as palmeiras e jardins tropicais que se alinham ao longo da promenade.
Outra característica da cidade é a rapidez com que se passa da calmaria suíça para o agito italiano. Afinal estamos em Lugano. Porque ao entardecer parece que todo mundo vem para as praças e ruas do centro histórico. As mesinhas dos cafés, sorveterias e restaurantes invadem a Piazza della Riforma e a Manzoni. À noite, as praças são o oásis dos boêmios e dos amantes da boa música. Ali acontecem – em abril/maio e junho/julho – os principais festivais da cidade: o de Música Clássica e o Lugano Estival Jazz.
Mas é na Via Nassa e adjacências que a cidade se descortina em elegância e charme. É a hora das caminhadas sem rumo e sem compromisso, por pausas nas galerias de arte, nas lojas de design, ou naquelas que fazem a moda, onde há sempre o que cobiçar. São vitrines meticulosamente produzidas e quase feéricas que disputam os olhares com frutas, queijos e salumeria. Estes expostos em carroções tipicamente italianos, estacionados nas calçadas: é uma festa. Nesse ambiente quase surreal, reforçado pelo chiaroscuro das ruas, o espírito de Lugano revela liberdade e civilização em alto grau. Aqui a cidade mostra sua verdadeira cara.
Mais um flash sobre o escritor me chega: qual seria seu cioccolatière preferido, pois todos sabem que ele era um chocólatra. É famoso um bilhetinho seu, pedindo à esposa: “se você descer à cidade, e encontrar aqueles chocolatinhos que eu gosto, compre”. Essa resposta eu nunca tive…
De volta ao Grotto del Cavicc, em Montagnola: agora sigo para a Fundação Hermann Hesse, minha última etapa nessa viagem. E me faz falta a figura do mestre. Como seria se estivesse vivo aqui? Mesmo sabendo que era um tremendo antissocial, aceitaria ele me receber para um simples abraço?
Eu voava distante, perdido em pensamentos, quando a voz da sra. Lucia Umikir – estudiosa do escritor e minha cicerone na Fundação – me atingiu como um raio. Não acreditei no que acabava de ouvir:
“Heitor, gostaria de conhecer o sr. Hesse?”
Silver Hesse, neto do escritor, fazia uma de suas raríssimas visitas à Fundação e se “interessou em falar com o senhor, sabendo que é um repórter do Brasil”, adiantou-se Umikir, sorridente. Para Hermann Hesse o acaso não existe. “Quando alguém encontra algo de que realmente necessita, não é o acaso que proporciona, mas a própria pessoa; seu desejo e sua própria necessidade a conduzem a isso.”
Pouco depois, ao deixar Montagnola, fui tomado pelo encantamento. Eu me sentia mais uma vez pronto para libertar os lobos – na alegoria do espírito livre – que ainda se escondem nas selvas da minha alma.
Onde ficar:
Em Basileia: O moderno Ramada Plaza (www.ramada-treff.ch) é a mais alta construção da Suíça. De seus quartos com janelas envidraçadas têm-se uma visão privilegiada da cidade. Outra opção é o pitoresco Krafft Basel Hotel, às margens do Reno, que perpetua um dos quartos em homenagem a Hermann Hesse, assíduo cliente desse hotel.
Em Lugano: Hotel Federale, www.hotel-federale,ch Excelente localização, quase ao lado da Estação Ferroviária, e a 10 minutos a pé do centro da cidade
Mais informações:
www.hessemontagnola.ch
www.ticino.ch
www.basel.com
www.swisstravelsystem.ch