Início Europa Itália Vontade de viajar

Vontade de viajar

Museu Hermann Hesse, Montagnola
crédito: viramundo e munbdovirado

Vou logo avisando, não sou tradutora. Mas, quando li o conto ‘Vontade de Viajar’, de Hermann Hesse (1877-1962), tive tanta vontade de que ele fosse lido por mais pessoas que fiz uma tradução livre. Desejava revelar sua grande atualidade e empatia com o que hoje vivemos. Sobretudo para aos que amam viajar “… uma vontade que não pode ser aplacada pelos livros, que exige sempre mais, e na qual é preciso colocar o coração”.

`Vontade de Viajar` foi escrito em 1910 por Hesse de quem sou leitora e fã incondicional. E o que a gente faz quando arrasta a asa desse jeito irrestrito por alguém? Atreve-se, voa e se lança à aventura, ou ao abismo, de estar perto, de ver, descobrir e conhecer mais sobre quem chacoalhou o coração da gente. Certo?

Na bela Casa Camucci Hesse alugou um estúdio avarandado
crédito: viramundo e mundovirado

Daí, parti para Lugano. Em 1918, essa pequena cidade italiana da Suíça não era tranquila o suficiente para Hesse. Ele vai para uma colina mais isolada, Montagnola, onde aluga um apartamento em antigo palacete. Encastelou-se e encontrou a paz que buscava para escrever contos, poemas, os livros ‘Siddharta’, ‘Demian’, ‘Klingsor’, ‘O Jogo das Pérolas de Vidro’, entre outros. E até para expor suas aquarelas.

Fundação Hermann Hesse, em Montagnola
crédito: viramundo e mundovirado

Montagnola é ainda hoje uma vila harmoniosa, casas cercadas de muito verde, e no topete da colina fica a Fundação Hermann Hesse onde pude ver suas pinturas, fotos, a máquina de escrever, sua caligrafia nas cartas, além de ouvir sua voz em tapes. Depois, pude seguir pelas mesmas trilhas em meio ao bosque onde ele também caminhava, e dar um tempo em acolhedoras `osterias` para saborear uma salada de cogumelos recém colhidos, queijos e taça de vinho. Por fim pude reverenciá-lo em seu jazigo em S. Abbondio.

Viajar é aprender, realizar, ver e vagar,
aquarela de Hermann Hesse
crédito: viramundo e mundovirado

Deixei o museu carregada de livros de Hesse, sendo um deles uma coletânea de contos de viagem, ‘Storie di Vagabondaggio’, que Zingarelli, espécie de Aurélio da língua italiana, traduz por: ir de um local a outro para visitar lugares sem itinerários fixos ou pré-estabelecidos, zanzar. Então escolhi uma palavra linda e sonora que desejava usar há tempos: Histórias de Vagamundear.

Lugano
crédito:viramundo e mundovirado

Só agora, nos incertos e cinzas dias da quarentena, me entreguei à leitura desse conto. Minha baita surpresa foi que Hesse o escreveu durante o longo período que foi obrigado a ficar de resguardo. Ao ver da janela “o sol que brilhou tão incrivelmente amarelo e jovem sobre a velha estrada “… voltou a sentir sua “bela e incurável vontade de viajar”.

Espero que você possa encontrar a mesma alegria que tive ao trabalhar na tradução desse conto. E, também se encante com as definições de viagem do Hesse vagamundo, pelegrino. E aceite meu convite e compreenda por que Lugano tem algo a mais.

crédito: viramundo e mundovirado

Vontade de Viajar, por Hermann Hesse

Estamos em pleno inverno, a neve se alterna ao föhn (vento quente e seco de montanha) e o gelo à lama, os caminhos estão intransitáveis, estamos cortados do mundo. O lago, na gélida manhã, exala brancos vapores e forma uma borda de gelo frágil como o vidro; mas ao primeiro vento quente ondula novamente negro e vivo e se torna azul como nos mais belos dias da primavera.

E eu estou sentado no meu bem aquecido estúdio e com frequência entro por alguns segundos no meu quarto, onde na parede está um mapa da Itália, e me dirijo com os olhos cheios de desejos além do Po e do Appennino, atravesso os vales verdes da Toscana, ao longo dos braços de mar azuis e amarelos da Riviera, cerro os olhos para ver melhor até lá embaixo na Sicília e me perco na direção de Corfú e da Grécia. Quanto rapidamente podemos estar em todos os lugares! E assobiando volto ao meu estúdio.

O ano passado estive seis meses em viagem, dois anos atrás cinco meses, e de fato para um pai de família, jardineiro e que mora no campo, é muito, e quando voltei para casa da última vez, pouco tempo faz, depois de ter adoecido, e obrigado a permanecer na cama por longo período, me pareceu chegado o momento de fazer as pazes comigo mesmo. Tão logo foram superadas a magreza, o cansaço, voltei a ser o que era, e não sobrou nada a não ser uma bela, incurável vontade de viajar.

Ah! a verdadeira vontade de viajar não é outra coisa senão a vontade perigosa de pensar sem nenhuma espécie de temores, de afrontar de peito o mundo e de ter resposta para todas as coisas, e sobre fatos importantes que virão. Uma vontade que não pode ser aplacada com projetos e livros, que exige sempre mais e custa sempre mais, na qual é preciso colocar o coração.

Assim selvagem e insaciável é a verdadeira vontade de viajar, o estímulo de conhecer e experimentar coisas novas, que nenhum conhecimento e nenhuma experiência conseguem saciar. Nós, loucos de viagens, de tudo o que podemos aprender da mãe terra, com o desejo de ser uno com ela, possuí-la e abandonar-se nela, numa medida que não se pode obter, mas apenas sonhar, desejar ardentemente.

Quando a terra nos chama, quando a nós vagamundos chega o chamado da volta, partir será acima de tudo um degustar, gratos e saciados, a mais profunda das experiências. Ilustração cajuzinho usada como ponto final das matérias da vmmv

Hermann Hesse, em Montagnola
crédito: Museu Hermann Hesse

Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásicas, do Viagem Estadão

*Acompanhe os autores também no Viramundo e Mundovirado, no facebook e instagram
**Assista os vídeos do Viramundo e Mundovirado

 

ViramundoeMundovirado
"Viajamos para namorar a Terra. E já são 40 anos de arrastar as asas por sua natureza, pelos lugares que fizeram história, ou pela cultura de sua gente. Desses encontros nasceu a Viramundo e Mundovirado."

Must Read

Kamchatka, é prá lá que preciso ir

Kamchatka é longe, aliás longe à beça, lógico que saindo do Brasil, mas não pense que seja uma viagem de superação, nada do tipo ‘grande aventura’, de se exilar do mundo, nada disso. Apenas um lugar para elevar o patamar de minhas expectativas.

Belo Horizonte, hub cultural no coração do Brasil

A recompensa da viagem a Belo Horizonte chega a ser transformadora para quem se dispõe a colhê-la. As viagens rejuvenescem, e guardam sempre um segredo na volta. Qual seria o meu?

Vontade de viajar

A verdadeira vontade de viajar não é outra coisa senão a vontade perigosa de pensar sem nenhuma espécie de temores, de afrontar de peito o mundo e de ter resposta para todas as coisas, e sobre fatos importantes que virão. Uma vontade que não pode ser aplacada com projetos e livros, que exige sempre mais e custa sempre mais, na qual é preciso colocar o coração.

  Em Cunha, driblando a pandemia

Cunha, a 240 quilômetros de São Paulo, tem roteiros para uma viagem panorâmica, daquelas com um caleidoscópio de paisagens. Um lugar no qual se pode exercer a liberdade e a imaginação. Cunha é uma escolha natural para os viajantes.

Experiências no Litoral Norte de São Paulo

Experiências Litoral Norte é muito mais do que um guia de praias, restaurantes, hotéis e pousadas, os lugares apresentados pelo Circuito Iitoral Norte apontam para esse movimento de reconfiguração das viagens e seus relacionamentos. E, dá a chance de observar aspectos centrados nas diferentes culturas e tradições dos caiçaras que vivem nessa paisagem que atravessa a história do Brasil.