Tão antigos no Brasil quanto o período colonial, os engenhos que extraem a seiva verde-dourada da cana-de-açúcar para fazer rapadura estão cada vez mais raros.
Quem vê um pedaço de rapadura nem imagina a trabalheira do seu preparo. Vestida num folgado camisolão de tecido fino só de alcinhas, que deixa à mostra seus braços robustos, dona Cleonice e seu marido são quase os únicos de toda a região de Caldas Novas, interior de Goiás, que guardam o saber ancestral de transformar as ramas da cana em rapadura, ricas em gordura, proteína, carboidrato, ferro, fósforo, além das vitaminas B1 e B12.
Foi por volta de 600 d.C. que os povos de uma região entre Índia e China descobriram como retirar açúcar da cana, obtendo um produto sólido que não fermentava. Séculos mais tarde, esse conhecimento passou para os europeus e, dentre estes, os portugueses foram os primeiros a comercializar o cobiçado e valioso produto. No Brasil a rapadura chegou no século 17, e em menos de cem anos o país se tornava o maior produtor mundial de açúcar.
De início a rapadura era um açúcar bruto, consumido apenas por escravos. Mas as negras quituteiras, que faziam doces com as frutas excedentes do pomar, ousaram acrescentar a rapadura para dourar o caldo das compotas e reduzir a calda nos doces cristalizados. Uma descoberta que permaneceria secreta: a rapadura dava sabor e aroma especiais aos doces de banana, de abacaxi, de batata roxa e de abóbora que iam para a mesa dos senhores.
Nos cultos afros a rapadura é um dos alimentos preferidos do orixá Ibêji que, no sincretismo religioso, está representado pelos gêmeos São Cosme e São Damião. Já no saber dos indígenas equatorianos a rapadura reduz os efeitos da altitude e, por isso, nas ruas do centro histórico de Quito é comum cruzar com turistas mordiscando um naco desse doce moreno.
Dotada de sete fôlegos, depois de limpar e deixar ao alcance das mãos todos os utensílios necessários, dona Cleonice cuida do fogo que nunca pode esmorecer, pois o calor é um dos fatores da qualidade da rapadura. Enquanto Zé descarrega a carroça, um ajudante vai colocando a cana na moenda. Prensada, ela libera o néctar de tonalidade verde-oliva – garapa – que, pela ação da gravidade, desce dentro de um tubo até o engenho e cai em uma peneira disposta sobre o tacho de cobre.
“Esse puxadinho há duas semanas era só uma tapera sem vida, escura e com cheiro de nada. Mas quando chega a cana! Ahh! Agora sim vira um engenho!”, alegra-se Cléo. Logo que a garapa começa a ferver um ramalhete de fragrâncias incensa o ar.
O trabalho é rude e intenso. A fumaça arde nos olhos, a quentura aumenta, e o caldo fumegante aos borbotões às vezes respinga fora do tacho. Se cair na pele arranca até o couro. Munida de uma enorme escumadeira de cobre Cléo vai recolhendo as impurezas da calda, atiça o fogo com cuidado para manter a temperatura estável, mexe o melaço, e faz o teste do ‘puxa’: com uma colher ela apanha um pouco do melado, coloca em uma cuia com água, molha os dedos, junta a seiva e se der para fazer uma bolinha tá no ponto.
Rapidamente ela e o marido passam o caldo para o cocho com uma cabaça cortada ao meio, único utensilio que suporta os 100ºC da seiva da cana. Com uma colherona que mais parece um remo, o Zé bate vigorosamente, arrasta pra frente e pra trás, mexe e vira e bate de novo até que o líquido se transforme em uma pasta cremosa, cor de caramelo. Então passa o creme para as formas de madeira retangulares. Já fria, a rapadura se solidificou, é hora de entornar sobre formas e embrulhar um a um os ‘tijolinhos’.
Trabalho terminado. Até a próxima safra da cana-de açúcar.
Onde Ficar: em Caldas Novas a melhor opção é o Rio Quente Resorts
Onde comprar: Cachaçaria Vale das Águas Quentes, Av. Cel. Bento de Godoy, 2000