Sei que o Heitor já contou essa história, mas o assunto não se esgotou, e não contei minha versão sobre o fato.
Turismo no abismo? Deixo para Karina Oliani minha valente vizinha de blog. Fui sempre assim: vou, não vou. Mas, tão certo quanto os opostos se atraem, quando meu intrépido futuro companheiro de viagens me chamou para conhecer o mundo, não hesitei. Graças a ele mudei para sempre: vou, não vou – voo.
Me fiava também no poder das novenas que sua mãe iniciava a cada nossa viagem. Até que ao saber de nosso plano ela jogou a toalha: “Groenlândia não, os inuites comem as cacas da pele”. Na verdade, o nome inuit significa ‘comedores de carne crua”, mas a gastronomia local não era nossa prioridade.
Sem google, com poucas informações sobre os inuites, o fax nos salvou. Pudemos encontrar uma guia em Qaqortoq que nos desaconselhou irmos no verão a não ser que levássemos aquelas roupas próprias para apicultores, não contra as abelhas, mas para nos proteger dos milhares de esfomeados mosquitos. Escolhemos então o início do outono e, zapp, partimos.
Depois de horas sem fim em escalas, estávamos a bordo do avião que nos deixaria em Nasarsuak primeira base da Groenlândia de onde seguiríamos de helicóptero até Qaqortoq, nosso destino.
E, não é que uma jovem inuit sentou justamente ao meu lado? Não, ela não estava com aquele modelito largão com capuz, e botas de couro de foca bordadas. A reconheci por seus traços: rosto de lua cheia, pele alva, olhos quase só um rasgo, cabelo retinto de tão preto e liso tipo boi lambeu. Taqulik, esse era seu nome, estava radiante pois voltava para Groenlândia depois de quatro anos de estudos na Dinamarca. Perguntei de cara como era sua cidade esperançosa que sua fala derretesse meu desejo de seguir viagem.
Qual o quê! Sua reposta foi a mais amorosa, simples e bela definição de um lugar: “Minha cidade é única no mundo. Ela tem algo precioso que nenhuma outra na face da terra possui – o ar! Seu frescor é tão bom que parece que aspiramos uma bala de hortelã”.
Adivinhe qual foi a primeira coisa que fiz ao desembarcar? Sorvi a fresca doçura respirando bemmm fundo! Tive a impressão que a Terra inteira havia sido recém-lavada. Acredito até que me transportei à minha primordial respiração, pois entraram junto com a respiração uma felicidade e uma coragem para desbravar o mundo, que sempre recorro a esse fluido sutil e mágico – tão simples quanto poderoso – em nossas desatinadas viagens.
Livre e a plenos pulmões entrei pois, no helicóptero com destino a Qaqortoq.
Em chegando, a cidade me sugeriu um desenho de criança desejosa de gastar todos seus lápis de cor de uma só vez. Um sobe e desce de colinas que iam dar no porto onde barcos multicoloridos flutuavam lado a lado de icebergs translúcidos. Atrás deles só o gélido índigo do oceano. As ruas eram pipocadas de casas em cores ainda mais vivas do que as embarcações, sem cercas e telhados negros. E riscando de branco o cobalto do céu, bandos de alvoroçadas gaivotas.
Tudo atraía nossa atenção. De repente, sacamos que ao cruzarem conosco em seus trenós motorizados os inuites diminuíam a velocidade e nos escaneavam com o olhar. Detrás das janelas de cada casa nos xeretavam. Foi divertido quando entendemos que para eles ver alguém do Brasil – um lugar tão longínquo, desconhecido e exótico – era o mesmo que para nós conhecer a Groenlândia e os inuites.
Quem quebrou o gelo foram as crianças que curiosas se aproximaram. Nos entendíamos por mímica, mas o melhor eram suas risadas gostosas quando ouviam nós dois conversando. Quando um gurizote pescava uma palavra em português, a repetia nos imitando e arrancava gargalhadas dos demais.
Outra diversão era fazer compras: tudo o que eu perguntasse onde poderia encontrar: de galochas a biscoitos, de filtro solar a frutas, de postais a meias de lã, o endereço era um só – o posto ipiranga do pedaço.
Viajar sempre me coloca diante de um impasse entre o sonhar e o ir. Mas, sempre o melhor é partir, nem que seja só para saber que há no mundo um lugar cujo ar perfumado, alimenta.
*Aquarelas de Rie Muñoz (1921- 2015). De origem holandesa, nascida nos Estados Unidos, a artista fez ‘uni-duni-tê’ no mapa mundi, para escolher sua viagem de férias, caiu em um território inuit, se encantou com a vida em um dos mais rudes climas do mundo, e não voltou mais.
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão