“…e olho no mapa do Brasil e vejo o marajoara que habita uma terra onde a terra não para”. Essa frase do poeta Cassiano Ricardo foi o estopim para conhecer Marajó, e depois a chama surgiu na curiosidade de conhecer a cerâmica marajoara. E aí, fui até onde tudo aconteceu”
Ilha de Marajó. É aqui que o rio Amazonas depois de percorrer 6.950 quilômetros se despede do continente. Nasceu nos Andes e pelo caminho foi carregando terras e sementes, participou de folguedos e procissões, espalhou gente, inspirou lendas e carregou história. E, na foz, como tributo à liberdade, oferece todo o seu tesouro ao formar a maior ilha fluviomarinho do mundo.
Foi nessa paisagem mutante, ora terra ora água, que se desenvolveu uma civilização que criou na cerâmica a mais bela representação de nossa arqueologia. Mas ao contrário de outras regiões, o terreno de Marajó, extremamente úmido e sujeito a grandes inundações, afogou a identidade de sua civilização. Dela restou, sobretudo, a cerâmica, e em particular a ritual – as igaçabas – urnas cinerárias.
Meu primeiro contato com a cerâmica marajoara aconteceu no Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, centro da ilha e longe das vilas turísticas de Soure e Salvaterra. Idealizado pelo padre Giovanni Gallo, em 1972, este museu, com instalações interativas, representa a vida marajoara desde a época pré-colombiana, além da fauna e flora que povoa essa ilha – um microcosmo da Amazônia.
Ali ficou evidente para mim o capricho das ceramistas marajoaras que contagiadas pela criatividade da natureza, plagiaram nos desenhos, águas, aves e serpentes. Entrelaçaram com maestria obras de formas despojadas com grande riqueza de grafismos.
A arte Marajoara, por sua sofisticação e originalidade, deve ser considerada uma das mais admiráveis correntes estéticas da humanidade
Para quem entende do riscado, a “cerâmica Marajoara é a mais antiga das tradições policrômicas – preto e vermelho sobre base branca – das Américas, e traz outros detalhes que chamam a atenção”, explica o arqueólogo Eduardo Góes Neves. “Está claro, pelas incisões (técnica que consiste em desenhar sobre a cerâmica ainda úmida), pelos engobos (revestimento de barro fino sobre a peça antes da queima), que várias artesãs trabalhavam numa mesma obra.
Trata-se de uma arte plástica baseada principalmente em combinações de linhas sinuosas, com representações antropomorfas (com forma humana) e zoomorfas (com forma animal) tirados da vida cotidiana e da natureza selvática que envolvia os habitantes da ilha de Marajó e que se perpetuariam sobretudo em suas urnas funerárias.
Foi a cerâmica que me trouxe a ilha, e me despeço como outro poeta, Carlos Drummond de Andrade: “O Marajó é uma coisa fantástica, só você vendo…. E depois de ver, é capaz de não acreditar. Você vê, sente, vive o Marajó, contar é difícil. Adianta?
Quando ir: Não existe uma época ideal para visitar o arquipélago. Quando não é o sol que te persegue é a chuva que te castiga. “Marajó é, de fato, uma coisa e outra nas duas estações do ano em que se transfigura: a das enchentes – fevereiro a junho e a das vazantes, agosto a dezembro. Quem a visitar numa só dessas estações levará dela uma imagem tão verdadeira como enganosa”, explicou o antropólogo Darcy Ribeiro.
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão