Dia 21, 22h … Nada além do mar, céu, escuridão, clarões violáceos que pipocavam no horizonte, vento e ondas. Ondas enormes rebentando sobre a proa do navio no qual viajavam 200 passageiros. Elas nos erguiam no alto de suas cristas, para em seguida nos jogar num abismo que se abria como numa montanha russa. A embarcação balançava muito e o barulho dos vagalhões no casco reverberava nas portas e nas escotilhas com vibração estridente a indicar que o navio, a qualquer hora, poderia fazer água.
De repente as quedas se tornaram mais constantes, como se barco e ondas quisessem medir forças. Havia nos golpes das ondas uma forte determinação, uma fúria demonstrada pela espuma que produziam. O navio, por sua vez, contava com a frieza sistemática de seus motores para não se deixar abater, cortando vagas e criando um caos de marolas rebeldes em seu convés. E, quando menos se esperava, o tempo ficou pior ainda. Pela janela da minha cabine, assisti ao momento exato em que uma forte ventania veio em auxílio das ondas e caiu sobre nós uma chuva daquelas como o diabo gosta: o céu desmoronava em pedaços, e a tempestade criava uma cascata, só que as águas corriam paralelamente ao barco.
Era o terror em estado bruto.
Naquele momento, estávamos atravessando a Convergência Antártida, na região austral entre a Ilha Geórgia do Sul e o continente antártico.
Minha rendição, entretanto, já tinha ocorrido bem antes, quando um enjoo me deixara semimorto no meu camarote por mais de 40 horas seguidas. Eu estava tão ruim, tão mal que enquanto rastejava pela 36ª – ou seria 63ª – vez, no escuro, procurando o banheiro para apaziguar meu mal-estar, proferi um vulcão de obscenidades e disse para Silvia que queria mesmo era que o navio e sua tripulação se danassem. Só uma pergunta absorvia meus pensamentos: tudo isso, por quê? Resposta:
Minha infinita capacidade de buscar sarna para me coçar. E, pressagiando o desenlace aguardei o soar da trombeta do Juízo Final.
Dia 22, 8h … O alarme não soou e o dia amanheceu cinzento, névoa cerrada e chuva que não davam trégua, mas perto do que havia sido a noite, agora era café pequeno. A visibilidade, quase nula, deixava notar um mar volumoso, e cheio de cristas, como se acumulasse energia para uma nova queda de braço. E talvez com mais fúria.
Se as previsões não eram boas, a informação do comandante no alto-falante foi pior ainda: “senhores passageiros, com pesar anuncio a morte do passageiro XY ocorrida na noite passada … “. Com meus botões retruquei: só um, depois de todo aquele apocalipse?
Dia 23, 7h … Exuberante, inexplorada, repleta de glaciares, rios congelados e cumes de grandiosas montanhas protegidas pela neve. Desembarcar na Baía Fortuna, na Geórgia do Sul, considerada o Alpes do Atlântico, foi descobrir que a vida ali está numa permanente balada. O barulho e a balbúrdia correm solto, mas o cheiro não é dos mais agradáveis. Estou no meio de uma colônia de quase um milhão de pinguins-rei. Os filhotes, que ainda não têm penagem definitiva, parecem vestir capotões ocre contra o frio. Estão sempre assoviando e curiosos se aproximam dos visitantes. Caí de amores por essas criaturas desajeitadas.
O paraíso também é habitado por leões e elefantes marinhos, pássaros como o petrel gigante e o albatroz. A baía é de uma beleza e alegria difícil de ser superada. Ao deixar o local vem à lembrança o verso de uma música do Lobão: “a vida é doce e depressa demais”.
Dia 03, 5h … Chegada em Ushuaia. Confissão: mesmo que tivesse que passar outra vez pelas tempestades, e mesmo que a minha indisposição durasse onze dias, eu iria novamente para a Antártida. Ali começa um universo onde tudo é extremo, submetido a leis que estão acima de qualquer ser humano.
Não foi encantamento à primeira vista. Foi matar saudade de um lugar aonde não tinha ido antes, mas que habitara meus sonhos.
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