No coração da vila, às margens do Velho Chico, parece que os moradores souberam dar cabo no tempo. Só falta ouvir o apito do velho trem chegando e a fumaceira branca arremedando nuvem. A Estação, bonita que só, tem portas encimadas de arcos, lambrequim recortado como franja do telhado, a torre do relógio e o solene portal com nome em relevo – Piranhas. A “Maria Fumaça” chegava carregada de sal, mantimentos e tecidos, mas conta-se que andava contando os passos. Os passageiros tinham tempo de descer dos vagões em movimento, colher umbus e voltar aos seus lugares lambuzados da miúda e saborosa fruta.
Piranhas deve seu nome ao temido peixe. O naturalista francês Castelnau deixa um registro sobre sua ferocidade: “a caçada da onça é sempre divertimento, o combate ao jacaré um simples passatempo, o encontro com as serpentes venenosas é um acontecimento diário, mas falai-lhes de piranhas e vereis que seu rosto se contrai exprimindo horror. Toujours les piranhas!”
As feras aquáticas, porém, não eram menos temidas do que os cangaceiros. Lampião nunca invadiu a cidade por conta do respeito à sua madrinha Nossa Senhora da Saúde, padroeira de Piranhas. Mas azucrinava tanto naquele sertão que a volante (polícia) fazia tempo estava ali em seu encalço.
Era junho de 1938, dia de mercado na cidade. Famoso e concorrido chegavam produtos de toda redondeza: madeira, carne de bode, frutas como o caju, queijos, farinha de mandioca, doce de goiaba ou de coco, licor de jenipapo, cachaça, tapioca, aviamentos, o brim azulão para as fardas da volante e dos cangaceiros, sandálias de couro de bode, e chapéus para citar apenas alguns itens.
Virgolino Ferreira da Silva, Lampião, e seu bando chegaram em Angico, fazenda localizada a nove quilômetros de Piranhas. Lampião pede Antonio da Piçarra, homem de sua confiança, para lhe fazer umas compras no mercado de Piranhas. Precisavam de rapadura, queijo do reino cuja embalagem de lata virava prato, e de tecido para suas fardas. E, estavam sedentos para provar as suculentas melancias.
Antonio ia comprando e estocando no mato para levar no escuro da noite. Mas a abastança da compra chama a atenção do sargento Aniceto que saca que o bando deveria estar nas imediações. De madrugada foram surpreendidos pela volante armada até os ossos. Onze cangaceiros foram mortos e Piranhas passa a carregar o peso do nome, não mais do feroz peixe, mas da valentia histórica de ter despachado o Cangaço.
Toda formosura da paisagem de Piranhas e do entorno foi cenário dos filmes: “Bye, Bye Brasil” de 1979, de Cacá Diegues, e “Baile Perfumado”, de 1997, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Neste último, muitos personagens foram os próprios ex-cangaceiros e ex-volantes que viviam em Piranhas. Seus depoimentos deram mais veracidade ao filme.
Em 2003 o município de Piranhas foi declarado Patrimônio Nacional, pelo Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Repare nas cores das casas, edifícios públicos, pontes, escadarias e igrejas de Piranhas. Cada detalhe da arquitetura como batentes, frisos, entalhes, altos-relevos, cornijas de gesso, bandeiras, caixilhos e frontões, ganharam pintura em tons contrastantes das paredes. O resultado é de harmonioso e vibrante conjunto, que permeia toda cidade. Confira também a limpeza das ruas e da praia local.
As quituteiras de Piranhas fazem um saboroso doce do cacto – Coroa de Frade – que é para ser degustado com queijo coalho. Outro préstimo da planta é devolver mau-olhado, daí ser comum vê-lo nas janelas das casas. Do cacto Facheiro se faz geléia. No tempo dos cangaceiros alumiava como um facho, as noites do sertão, daí seu nome.
A Igreja de Santo Antonio de Lisboa construída em 1790 fica no vilarejo de Piranhas Velha, e diante das últimas corredeiras do Rio São Francisco. Na fachada do singelo templo um curioso alto-relevo mostra a imagem do Santo em seu hábito franciscano, coroado com vistoso cocar indígena de penas amarelas. Para os historiadores foi artimanha utilizada pelos padres jesuítas para conquistar a simpatia dos índios.
Ziguezagueando pelo São Francisco, a bordo de um barco a motor, cheguei depois de 15 minutos a Ilha do Ferro, que tomou seu nome de uma formação rochosa em frente a cidade. A poucos passos do rio fica a sede da Art-Ilha, uma associação com muitas artesãs como Poliana, Deda, Irene e Maiara.
O bordado dali bebe de uma única fonte, uma flor amarela denominada Boa-Noite. Flor e bordado se fundem no nome, assim como as técnicas de sua execução: o tecido é desfiado e torcido como na renda labirinto mas, se une aos pontos do rendendê. Este raro bordado, único no Brasil, apresenta quatro diferentes composições, o boa-noite simples, o boa-noite de flor, o cheio e o cheio com variação.
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão