Tudo o que sai do script me entusiasma.
Por isso, quando li que eram um mistério as peripécias que ocorrem no céu de Évora, sem pestanejar azulei para essa cidade que brota nas planícies douradas do Alentejo, em Portugal. Eu me senti chamada a uma viagem livre, onde basta erguer os olhos para curtir as paisagens do céu.
O além do Rio Tejo é uma região que em séculos passados foi ocupada por romanos que a embelezaram com templos, pontes, teatros, vilas luxuosas, e aquedutos. Já os árabes deixaram na memória alentejana hábitos alimentares, laranjas e limões perfumadíssimos, além de centenas de palavras.
Da capital Lisboa partem ônibus que ladeiam plantações de trigo, oliveiras e sobreiros, árvores de cuja casca – cortiça – se produzem rolhas e, em menos de duas horas, alcançam Évora.
Preferi sair de madrugada, e mal amanhecia quando cruzei uma das portas da muralha medieval que a envolve. Uma inefável luminosidade me soou benfazeja e
ah! o primeiro céu a gente nunca esquece…
Não era, porém, do tipo de se fazer contato com deuses, angélico, aguado e fofo. Era cor de céu que anuncia chuva e como um toldo negro cobria a cidade. Pesado feito ardósia. Mas não me pareceu assustador, ao contrário. Qual seria a razão? Explico. O casario colonial tem uma escala à portuguesa “pequenota, airosa e ternurenta”, como por lá se diz.
As casas de paredes brancas feito tapioca, janelas contornadas de amarelo girassol, e telhados vermelhos, fazem moldura delicada ao céu. O conjunto gera uma feliz união.
Évora faz a gente ver o que quer; então acredito que o céu dali tem alma de artista. Diria à la Marc Chagall (1887-1985), feito de epifanias felizes onde se pode topar com noivos apaixonados, ramalhete de flores, cabras, violinistas, relógios e peixes.
O mar do céu do Alentejo é um inovador produto turístico que faz parte do Starlight Tourism Destination, cuja meta é observar meteoros, estrelas cadentes, e outros fenômenos. Então, fiz vigília à noite na varanda do hotel. Não demorou para que elas surgissem. Não caindo, mas escorregando suavemente naquele vasto oceano aéreo.
Com as bênçãos do céu pude curtir uma viagem sem limites, que não fica na mesmice do contemplativo, e descobri também que há muito mais estrelas em Évora. Na verdade, constelações.
De tanto mirar o alto eu havia me familiarizado com torres, sinos, chaminés, e cataventos dos telhados do burgo medieval. Em um zás-trás nos imaginávamos na época das princesas, castelos, reinos, e muralhas denteadas. Agora eu me sentia fora do enredo, caminhando sem guia nem roteiro, e assim cheguei no coração da vila onde uma alameda corre debaixo das arcadas. Nas galerias estão os cafés, lojas de azeites e sardinhas em lata, adegas onde se pode comprar, a peso de ouro, o mais renomado dos vinhos alentejanos, o Pera-Manca, e as doçarias com bocadilhos tentadores na vitrine.
Os nomes das iguarias doces indicam pistas dos segredos do convento: orelhas do abade, biscoitos do cardeal, barrigas de freiras, sonhos, travesseiro, ais, toucinho do céu; além dos típicos de Évora como os formigos, a encharcada, os almendrados, o pão de rala, as queijadas. Já a rosca folar, produzida só na época da Páscoa, tem um ovo com casca e tudo colocado na massa para assar.
Sobre a arcada foram construídos palacetes nobres, cuja beleza o tempo cobriu de pátina em tons desmaiados de madrepérola. E, por todos os lados muitos lampiões e, pendurados nas janelas e sacadas, colchas e lençóis “a cheirarem a limpo”, como lá dizem.
Mas há principalmente janelas que de tão especiais parecem quadros na fachada. Podem ser esculpidas em pedra com motivos de florões e arabescos, ornadas de balcões em ferro trabalhado, e muitas têm sacadas estreitinhas onde gatos disputam espaço e sol com vasos de flores.
Um aqueduto antigo passa sobre parte do casario e, aproveitando o vão dos arcos de pedra, alguns moradores construíram casolas apertadas que sem dúvida estão entre as mais fotografadas da cidade.
Repentinamente, ao dobrar uma esquina, aconteceu. Na verdade, isso acontece em todo lugar – as ruas têm placas que assinalam seus nomes – mas em Évora elas encantam. Eu estava na Travessa dos Frades Grilos, diante da Rua da Tamara, que continuava pela Rua da Moeda paralela à dos Mercadores, e logo me vi na Praça Giraldo sem Pavor.
Gostei da brincadeira de andar à toa e me embrenhar nas vielas só procurando placas. A primeira rua em que entrei, ó céus, era a do Imaginário. Em seguida descobri as ruas da Capelinha, da Cerca Nova e a Rua do Pocinho. Passei pela Travessa do Mal Barbado e vi que estava totalmente perdida no Beco do Beiçudo. Quando pedi ajuda ao dono da lojinha de queijos e embutidos pouco maior do que um armário, ele me saiu com um:
“aqui as ruas são desiguais, dão voltas diferentes”.
Como o eborense era bom de prosa, e eu vivo numa espécie de idade adulta dos porquês, emendei “ainda que mal pergunte, que nomes bizarros são estes das ruas de Évora”? Ele abriu um sorrisão e tascou:
“as placas das ruas daqui são passaportes para viajar no tempo com seus nomes tão português de antigamente. Quer ver? Travessa do Bagulho ou do Cavaco, Rua do Alfaiate da Condessa, das Amas do Cardial, ou do Lagar dos Dízimos. Tudo escrito assim mesmo. Então sugiro que a moça vá para a Rua do Inverno onde fica um dos melhores restaurantes de Évora, a Taberna Quarta-feira, cujo prato ‘espargos com ovos’ mereceu até uma crônica. E já que misturei nomes com comida, fique sabendo que o corte da carne de porco aqui também possui inusitados nomes, como pluma e secretos”.
Agradeci pela prosa tão boa já pronta para mais andanças. Foi quando me deparei com uma rua tão pequena que nem tinha placa. Na verdade era apenas meia curva com três casinhas de uma só porta, brancas que só um lírio de Santo Antônio. Qual nome haveria de ter se merecesse uma denominação?
Também me perguntei se quem mora nesses endereços se contagia pelo nome. Considera-se abençoado quem vive na Rua do Salvador ou no Largo da Graça? E na Rua das Nobres só mora gente chique? E será que o nome ressoa casas adentro?
Sopraram no meu ouvido que na Rua das Donzellas as casas estão quase todas desabitadas.
Uma esquina tem placa que faz o rumo mudar novamente só para encontrar uma capela tinindo de tão branca, ou uma loja que anuncia ‘sonhos a preço de ocasião’.
Em hora de fome mansa, os viajantes fazem como os estudantes da universidade de Évora: procuram as tascas para escolher um dentre os pães ‘estaladiços’ – crocantes. O recheio do sanduíche pode ser queijo cremoso de vaca ou de ovelha, presuntos ou enchidos fatiados na hora, azeitonas carnudas, lascas de amêndoas e, finalizando, um fio de azeite maduro. Para acompanhar cai bem um ‘abatenado’ – um generoso café forte – ou uma ‘meia de leite’ e, melhor ainda, um cálice de vinho branco floral e fresco.
Para saborear um desses piteis celestiais, há praças ensolaradas, mas o melhor lugar é o Jardim Público pontilhado de bancos sob as árvores. Sabe o que há mais ali? Um monumento à memória de Florbela Espanca (1894-1930). Renomada poeta alentejana, viveu muito à frente de seu tempo, mas, desiludida, pôs fim aos seus dias ao completar 36 anos. Um de seus versos revela sua inquietação:
“sou talvez a visão que alguém sonhou
alguém que veio ao mundo pra me ver
e que nunca me encontrou”
Como não foi fácil achar a Rua das Casas Pintadas, dou a direção para quando você aparecer por lá
As casas estão escondidas em um jardim atrás do Palácio da Inquisição, onde muita gente tida como estranha foi acusada de bruxaria e lançada à fogueira na praça Giraldo. No final da área gramada podem ser vistas as pinturas murais nas paredes dessas antigas casas onde, dizem, viveu o navegador Vasco da Gama ao voltar das Índias.
As pinturas evocam relações humanas nas figuras de animais do bestiário medieval. O perigo do amor fácil está representado pela sereia e pela harpia, já a garça representa o amor verdadeiro, e ainda há o basilisco, ser mitológico que nasce do cruzamento do galo com a serpente, e mata pelo olhar. Ironicamente, a única forma de matá-lo é colocar um espelho diante dele.
Com o objetivo matar de medo, três monges construíram uma capela toda cravejada de ossos humanos. Utilizaram mais de 500 caveiras e milhares de ossos a fim de transmitir o recado da transitoriedade da vida. No entanto, foi tal a riqueza de grafismos e texturas, que transformaram o assombro em encantamento.
Devido a tantas coisas extraordinárias, em 1986 a cidade foi declarada, pela Unesco, Patrimônio da Humanidade.
Évora me deixou conhecê-la de muitas maneiras e colocou na minha bagagem a palavra inesquecível. Na despedida a cidade me revelou a rua que será meu endereço quando para lá voltar: Rua das Façanhas. Me aguarde!
Como chegar
TAP – A melhor opção, direto a Lisboa
Onde comer
Restaurante Degust’Ar, comida alentejana criativa preparada pelo chef António Nobre,
Taberna Quarta-Feira, Rua do Inverno 16 – não abre aos domingos
Onde ficar
M’AR de AR: em duas versões, Aqueduto ou Muralhas, localizado dentro da muralhas medievais
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