Curiosas são as inspirações para uma viagem!
Uma delas foi para mim o desejo de saber mais sobre o grafite.
Mas segurei o ímpeto de sair voando e pulverizando em diversas direções, feito um jato de tinta spray, e organizei uma lista para saber se, de fato, o grafite me renderia uma boa viagem. Primeira questão: qual país escolheria para ver essa tão atual quanto controversa arte urbana?
Os grafites têm a graça de criar um saboroso e repentino imprevisto para os viajantes ao se depararem com as pinturas, o que é bem coerente com sua definição:
“uma forma de se expressar sobre um suporte que não foi feito para essa finalidade”
Decidida quanto à motivação da viagem, e querendo saber o que há de novo no universo do grafite, parti para o planejamento.
Em minha sondagem concluí que o grafite, a mais atual manifestação artística, é também, quem diria, a mais remota. Isso mesmo, afinal o homem primitivo grafitou as paredes das cavernas com muitos desenhos, sobretudo de animais.
Mas, que pena! Justamente os que mais despertam minha curiosidade estão fora do alcance. Não tenho como conhecer os grafites das priscas eras na renomada caverna de Altamira, na Espanha, cujos desenhos têm traços impressionantes: é fechada à visitação. Localiza-se no município de Santillana del Mar, na Cantábria, e suas pinturas com mais de 17 mil anos precisam ser preservadas. Na verdade, apenas um visitante por dia tem hoje o privilégio de admirar os desenhos dos ancestrais grafiteiros. Os demais, podem visitar a réplica construída no Museu de Altamira.
Já que essa viagem no tempo ficou fora de questão,…
Escolhi três capitais de países europeus cujos grafites, atualíssimos, chamaram minha atenção em fotos e reportagens: Bruxelas, em Flanders, porque tem um roteiro criado só para ver os grafites de diferentes artistas; Viena, na Áustria, onde um único artista renovou as ruas da cidade, e Lisboa, em Portugal, porque dois artistas revolucionaram essa arte de rua.
“Para cada época sua arte.
Para arte a liberdade”
Essa antiga frase não poderia ser mais moderna, e foi o passo definitivo que impulsionou minha viagem!
1 – Bruxelas: Conhecida como a capital do cartum,
abriga museus, festivais mercados, galerias e lojas dedicadas ao tema. No entanto, a mais atraente atividade para conhecer os personagens das tirinhas é o percurso dos quadrinhos grafitados nas paredes dos antigos edifícios.
Tintin é um dos mais queridos heróis das tirinhas belgas. Envolvido em peripécias nos locais exóticos do planeta, está sempre na companhia do Capitão Haddock e do esperto cachorrinho Milu. As aventuras de Tintin compõem a obra mais renomada de Georges Prosper Remi, que adotou o pseudônimo Hergé.
Agora o destaque é o anti-herói Nero, facilmente reconhecido pelo nariz batatudo, gravata borboleta e apenas dois fios de cabelo. Nero é uma das criações do quadrinista Marc Sleen, dono de um sofisticado humor do absurdo, que se tornou lendário por produzir durante 55 anos duas tirinhas diárias. Sleen era um apaixonado dos animais e das viagens.
No final do roteiro que contempla dezenas de paredes, vale uma pausa para saborear outra obra de arte belga: a cerveja. Brindei os grafites com uma Chimay Blue, de aroma e sabor intensos, elaborada pelos monges trapistas.
Templos, castelos, teatros, e elegantes cafés faziam a fama de Viena na década de 1950. Tudo muito tradicional e belo. Mas ali faltavam espontaneidade e colorido. Foi quando o artista Friedrich Hundertwasser (1928-2000) transbordou o espaço das telas, expandindo suas cores e formas para as entradas de metrô e paredes de edifícios. Emoldurou janelas com tons vivos, aplicou pastilhas, ladrilhos, espelhos, inventou sacadas, cúpulas em forma de cebolas, colunas que sugerem peças de um jogo de xadrez, vestiu com bonés gigantes a saída dos tubos das chaminés, e acrescentou divertidos ‘puxadinhos’ nas fachadas. Enfim, mudou de modo divertido a cara dos cinzentos e austeros prédios da cidade.
Seu trabalho, porém, não pode ser considerado rigorosamente como grafite, pois une arquitetura e grafite, sendo precursor do refit, aquela repaginada que hoje vemos nos ex-feiosos edifícios das cidades.
O prédio mais desprezado de Viena, a Central Térmica de Spittelau, era uma imensa e horrorosa usina de lixo.
Hundertwasser o revestiu totalmente de cores e formas, transformando-o não apenas em ponto turístico, mas em exemplo adotado por outras capitais do mundo.
2- A Lisboa antiga: teve as ruas estreitinhas ampliadas
Foi necessário derrubar velhas casas, ou parte delas, e as empenas que ficaram à mostra se revelaram um imenso painel onde os grafiteiros podiam fazer a festa. E fizeram mesmo!
Dentre os artistas cujas obras embelezam Lisboa se destacam os já famosos Bordalo II, Eime, Odith, Okuda, Aka Corleone, e Alexandre Farto.
Este último, mais conhecido como Vihls, além de grafiteiro é escultor. Ele ‘escava’ as paredes dos velhos edifícios, remove camadas de diferentes materiais da construção, deixa à mostra alguns, e cria assim variadas texturas. Quanto mais a parede é esburacada, cheia de manchas, rústica, e desnivelada, mais atrai o artista, que nela projeta retratos de personagens oriundos de um mundo pleno de poesia.
Cheios de vida, que até mesmo parecem saltar das paredes, os animais desenhados por Artur Silva arrebatam. Por quê? Explica o artista:
Sempre a querer fazer mais e maior com obras impactantes para chamar a atenção e roubar os olhares distraídos pelos outdoors.
Sua tag – nome que no universo do grafite define a assinatura do writer, grafiteiro – é Bordalo II. Ele vai além do grafite, pois inclui na pintura todos os tipos de coisas que foram descartadas, como celulares, pneus, computadores, plástico, torneiras …, um modo de alertar para o consumismo desenfreado dos humanos.
A fusão dos elementos mais díspares com a pintura cria um surpreendente efeito 3D.
E, por que animais? Porque, ao mesmo tempo, Bordallo II deseja cutucar a consciência das pessoas para essas vítimas do abandono, da poluição, do desmatamento, enfim, da destruição de seus habitats.
Diante das obras me surpreendi também com a quantidade de viajantes de diferentes nacionalidades:
“Você não sabe que o grafite é hoje uma das maiores fontes dinamizadoras de turismo”?
Foi o que me revelou um apaixonado por essa arte urbana. E concluiu dizendo que os grafites se tornaram um imenso projeto cultural ao incentivar artistas do mundo inteiro a ocupar espaços degradados da cidade, transformando-os em obras de arte. Ele me propôs fechar os olhos por uns instantes. “Imagine agora essa parede sem o grafite. Sem graça, não?”
De puro fascínio foram as sensações que experimentei diante das obras. E mais: me levaram a conhecer melhor Bruxelas, Viena, e Lisboa, porque caminhar é ainda a maneira mais enriquecedora de se conhecer uma cidade.
Quanto à Espanha, me inscrevi na lista dos possíveis privilegiados de contemplar os ‘afrescos’ da caverna de Altamira. Um dia, chego lá!
Onde ficar:
Em Lisboa: Hotel Dom Pedro Palace, no bairro das Amoreiras
Lisb’on Hostel, Rua do Ataíde 7, Chiado, Lisboa,
Em Bruxelas: Hotel Amigo, ao lado da Grand Place; primoroso na hospitalidade, na gastronomia, e uma suíte decorada com pinturas e objetos sobre Tintin.
Em Viena: Mercure Grandhotel Biedermeier, na Landstrasser Haupstrasser 28,
Quem leva:
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