Absorvida em seus afazeres na quietude da cozinha, a jovem, com gesto delicado, verte um fio de leite na vasilha. Alguns pães, que se advinham crocantes, estão na cesta e sobre a toalha. Sob luz tênue, vê-se que ela tem as mangas arregaçadas e à guisa de avental um pano azul cobalto envolve a saia cor de avelã. E tão alvo quanto o leite um pano encobre os cabelos. Quase um véu. Fará outra fornada de pães? Ou vai servir uma merenda de pão e leite? Penso em como o trivial pode ser extraordinário! “A Leiteira”, nome do pequeno quadro que vi no Rijksmuseum, em Amsterdã, despertou meu apetite de saber mais sobre o artista.
Claro que descobri não ser a única. Durante anos, muitos pintores, críticos de arte, e marchands buscaram saber mais sobre Johannes Vermeer, e sua obra. Mas como os dados biográficos eram escassos, não deixou cartas, desenhos, esboços, estudos, além de vários quadros sem assinatura, que era inevitável a pergunta: será que esse cara existiu mesmo? Fiquei sabendo então, que em Delft, cidade apenas a uma hora de trem da capital holandesa, existia um instituto dedicado ao pintor. Abracei as surpresas que mudam o destino da viagem, meus interesses, e num zastrás já estava lá.
Não se pode ficar distante das imagens, das histórias, dos personagens que habitam nossa mente. Há de entrar nelas.
Foi na encantadora Delft que Vermeer nasceu em 1632. Com seus canais bordejados de flores e de casas escalonadas, típicas dos Países Baixos, ruas e praças bem preservadas, nem foi preciso muito esforço para voltar no tempo. Naquela época o porto de Delft era um vaivém de navios a desembarcar preciosidades vindas de além-mar: seda, louça, tapetes, tecidos e as especiarias para saborar os alimentos. Mas, foi a porcelana vinda da China com desenhos de exóticos templos de beirais arrebitados – expostas à vista dentro das casas – que alavancou a produção da louça azul pintada a mão, cuja tonalidade peculiar, ganhou o nome de ‘azul de Delft’.
O Centro Vermeer ocupa o São Lucas Guilde, casarão do século 17, onde funcionava a associação de pintores e ceramistas, também frequentado por ele. Ali estão cerca de 37 fotos de suas obras, pois os originais se encontram nas coleções de renomados museus do mundo. Os registros pessoais ocupam poucas linhas: com a idade de 20 anos ele se casa com Catharina Bolnes, e se matricula na escola de pintura. O casal teve 15 filhos, e após duas guerras a cidade de Delft faliu, obrigando o artista a trocar quadros por alimentos. Vermeer morre com apenas 43 anos.
Com um nada de dados, os visitantes focam nas telas, afinal foram elas que atraíram pessoas de todo mundo, eu inclusive, a estas salas.
Vermeer não segue os grandes mestres holandeses anteriores a ele que criaram quadros dramáticos e cenas heroicas. Inverte, retrata a vida familiar num momento trivial do cotidiano: mulheres entretidas em bordar, ler ou escrever cartas, ou tocando um instrumento musical. Mostra o estar bem, o aconchego e o conforto dos ambientes bem cuidados. Como gostavam de receber uma visita e fazer as honras da casa. Casas com piso de mármore branco e preto, janelas com vitrais ou vidros grossos, tapetes, espelhos, mapas, prataria, louça e belos móveis. Sobre eles frutas, pães e vinho.
De repente, achei curioso que, quadro após quadro, me peguei como se estivesse xeretando os interiores. Essa sensação foi por conta de suntuosas cortinas pendentes no primeiro plano dos quadros. Era como se Vermeer, ao mesmo tempo, desejasse revelar e manter a intimidade da cena. E, não se vêm apenas pinturas, imagina-se a música, a textura das pérolas e dos tecidos, o sabor das iguarias. Que aroma exalariam esses interiores? Aguçam a sede de saber mais e mais.
Contudo por 200 anos Vermeer permanece esquecido do resto do mundo. Foi a luz que emana de suas telas, e o brilhante uso dela, que despertou a paixão dos impressionistas franceses. Sua obra ganha reconhecimento internacional, e ele passa a ser considerado o “Mestre da Luz”.
A “Jovem com brinco de pérola”, é tida a ‘Mona Lisa’ do Norte, pelo mistério que emana de seu olhar, e a boca entreaberta como a querer contar algo. Enigmática com seu turbante oriental, tem milhares de releituras: com capacete de astronauta, passando por dezenas de modelos em poses e fotos de moda, a gatos, urso panda, até uma Marge Simpsons, para citar algumas apenas interferências. O desejo de ter e sentir o artista mais próximo.
A arte instiga ações como a viagem que fiz a Delft. Há quem não se contente com pouco. “A Lição de Música” tocou tanto Tim Jenison, empresário americano, que reconstruiu em tamanho natural a sala com todos os elementos, objetos e móveis, dispostos meticulosamente no espaço. Recriou os antigos instrumento musicais e até o tapete. Fio por fio. Tintim por tintim. Por fim, se colocou dentro do ambiente, ziguezagueou, para tentar decifrar o porquê de sua obsessão por essa pintura. Terá descoberto? Não sei. Não é o quadro que tem que entrar no coração e na vida da gente?
Uma obra de arte não pode ser clonada porque ela nasce direto da alma de quem, apesar de todo tormento da vida, soube fazer não apenas as honras da casa, mas as honras de sua cidade, e as honras da Holanda.
Mais em: www.vermeerdelft.nl
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão