Se dobrar à esquerda, apenas desembarcada do trem, em duas quadras chego ao coração do vilarejo de Auvers-sur-Oise. A mesma distância à direita e já estou no campo, ladeando o tapete amarelo dos trigais. No percurso entre o centro e arredores, uma igreja, algumas ruas e casas, la Mairie, sede da prefeitura, o castelo, e um reluzente campo de trigo, pintados por Vincent Van Gogh, estão reproduzidos em milhares de livros de arte, e traduzidos em centenas de idiomas do mundo.
Para a ville de Auvers-sur-Oise, a 34 km de Paris, Van Gogh (1853-90), viajou em 1890, na esperança de descobrir cores mais vivas para sua paleta, e encontrar a cura de seus nervos em frangalhos. E, a encantadora aldeia tinha ‘dois coelhos na cartola’: um sol radioso, e era ali que vivia o Dr. Gachet, médico homeopata que estudava ervas medicinais no tratamento da esquizofrenia, talvez a enfermidade de que padecia o artista.
Ao chegar em Auvers, Van Gogh se hospedou no Hotel Ravoux. Mas ele apenas podia pagar pelo pior quarto dali, uma mansarda desprovida de janelas, com apenas 7 m² e uma claraboia minúscula no teto baixo. Vincent fizera um trato com o irmão Theo, este o sustentaria até seus quadros começarem a ser comprados. Mas, seus quadros não vendem. Havia dado a si mesmo dez anos para atingir o sucesso, e o tempo estava se esgotando:
“Uma tela que pinto vale tanto quanto uma tela branca”.
E, eu desejei refazer os passos de Vincent. Embarco no trem na Gare du Nord em Paris, e quase uma depois chego em Auvers-sur-Oise na esperança de compreender um pouco mais sobre ele, pois ali não existe sequer um único quadro do artista holandês.
Assim como eu, visitantes de várias nacionalidades querem observar os motivos que ele pintou para tentar entender a maneira como ele sentia. Caminham pelas ruas com calçamento de pedra com um livro de reproduções dos quadros de Van Gogh nas mãos, param diante dos campos cultivados, das casas, dos muros cobertos de eras, do castelo de Auvers, da prefeitura, do jardim da casa do Dr. Gachet, e da igreja gótica.
É, pois, quase uma espécie de peregrinação o que se realiza ali. As pessoas buscam o homem que chegou em Auvers depois de sofrer com a solidão, a miséria e enfraquecido pelas doenças provocadas pela fome. Preferia gastar em tintas que utilizava com muito volume para trabalhá-las na tela usando o pincel como uma espátula.
Seu trabalho era …. e até dá para imaginar em algum descampado dos arredores dá até para imaginar o pintor amarrado ao cavalete quando soprava o mistral.
Nos primeiros dias em Auvers, Vincent revive. Incansável em 66 dias realiza 33 desenhos, e 70 quadros luminosos e de cores vibrantes – algumas das mais belas obras de arte da humanidade. “Tenho uma estranha lucidez quando a natureza é excepcionalmente bela. Muitas vezes invade-me uma clarividência terrível. A excitação que se apodera de mim diante da natureza vai aumentando até me fazer perder os sentidos”, descreve em carta ao irmão Theo.
Uma de suas telas, erroneamente tida como derradeira, pintada nos campos ao redor de Auvers-sur-Oise é um trigal sob ameaçadora tempestade com uma revoada de corvos. Ao terminá-la talvez tenha intuído que era o prenúncio da nova arte. Dias depois Vincent se dá um tiro no peito.
Após o enterro em Auvers, Theo volta ao mísero quarto, e no bolso do surrado paletó de sarja azul, encontra a última carta que Vincent ainda não lhe enviara: “ No meu trabalho arrisco a vida e metade de minha razão nele se desfez”.
Devastado com a perda do irmão, seis meses depois Theo falece em Paris.
Trancado por quase um século o quarto se manteve magicamente intacto, e entrar ali provoca arrepios. O diminuto espaço é imensurável de emoções. A mansarda onde o artista viveu os dois últimos meses de sua vida, é hoje é o Museu Maison de Van Gogh, tido como um dos menores do mundo.
No tempo que o quarto permaneceu fechado, ele passou de pintor que enchia telas em estado de transe, a extraordinário artista na história da arte mundial. De desprezado a um dos mais amados pintores do planeta. Suas obras bateram todos os recordes em leilões e ganharam salas especiais nos museus do mundo. Ironicamente hoje, a venda de um quadro de Van Gogh daria para comprar todo o vilarejo de Auvers-sur-Oise. Castelo incluído.
Para saber mais:
Museu Maison de Van Gogh: Place de la Mairie – Rue du Général de Gaulle 52 – Auvers-sur-Oise
Aberto de 2 de março a 30 de outubro, das 10hs às 18hs. Fecha as segundas e terças
www.france.fr
Como chegar:
Tomar o trem em direção a Pontoise que sai da Gare du Nord, ou da Gare St.Lazare.
Em Pontoise é preciso trocar para a Linha Persan-Beaumont, e seguir até Auvers-sur-Oise. O percurso dura em média 30 minutos. Consulte os horários em www.transilien.com
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