Nossa viagem começa em Punta Arenas, Chile, bem a tempo de ver o ferry partindo para a cidade de Porvenir, na Terra do Fogo, sem Silvia e eu a bordo. Erro de horário. Toda a viagem foi mais ou menos assim: um itinerário idealizado, mas novos roteiros eram estabelecidos a cada dia.
Meu destino estava do outro lado do estreito de Magalhães, onde domina a natureza prístina, e onde todas as peripécias podem acontecer.
A jornada previa navegarmos pela Baía Inútil e pelo Fiorde Almirantazgo, até alcançar o Glacial Marinelli aos pés da Cordilheira Darwin. Depois de montarmos ali acampamento por dois dias, iríamos a cavalo até a Caleta Maria no Lago Fagnano. Pernoitaríamos na estância fueguina de German Genskowski, para então retornarmos de 4×4, para Punta Arenas, depois de cinco dias de viravoltas.
O que alimenta um coração faminto de aventura, de novas conquistas no universo da imaginação e da cultura? É isso que tento encontrar. Mas, oito horas depois, já em Porvenir, ouvíamos que não seria possível navegar até o glacial devido as borrascas que abalavam a região. Iríamos direto de carro até a estância de German, no Lago Fagnano. E, como sempre respeito o acaso, logo a seguir já estava vibrando novamente com a viagem.
No dia seguinte, enquanto organizávamos o novo roteiro, resolvi conhecer melhor a bem planificada Porvenir, de ruas largas com árvores podadas parecendo gigantes dan tops, e cujas casas de madeira colorida são patrimônio arquitetônico do Chile. Foi compensador.
No Museu Provincial Fernando Rusque, o diretor da instituição Juan Santana me explica o que mais me fascinou – as máscaras dos Selk’nan – , aborígenes que já habitavam há 12 mil anos o território que incluía a Terra do Fogo. As máscaras eram confeccionadas de couro de guanaco e da cortiça de certas árvores fueguinas e usadas na cerimônia do Hain. Este, seu mais importante ritual consistia na iniciação e no preparo dos jovens para a vida adulta.
Ao deixarmos Porvenir, em direção ao sul, passamos por terras de ninguém, habitadas por vagos alguéns. Encontramos povoados de mineiros, com suas enferrujadas dragas da prospecção de ouro abandonados, como o da localidade de Russ Fin, cujos destroços são hoje Monumento Nacional. No caminho vislumbramos ao longe naqueles campos abertos, sem uma árvore sequer, verdadeiras mansões em estilo anglo-escocês, das casas administrativas das estâncias fueguinas, muitas delas em ruínas, mas que retratam o apogeu da colonización ovejera da Terra do Fogo.
Na ilha, o frescor do ar nos deixa a lembrança de balas de menta, do aroma que lembra o do mel, e também o som do vento. Este está sempre em festa. Só se ouve ele. De vez em quando um latido nos avisa da proximidade de uma estância, ou da presença de um rebanho de ovelhas. São collie-borders pastoreando. Foi assim que descobrimos quase mimetizados com a natureza, os pastores Neftali e Juan que estavam há três dias levando 2.600 ovelhas para um galpão de tosquia. O passado e o presente ali são apenas o mesmo instante.
A seguir observamos que outra natureza se aproximava. As pradarias deram lugar a campos nevados cercados por montanhas e lagos. Vendavais vinham não se sabe de onde. Essa tempestade é conhecida como williwaw, e ocorre quando o ar gelado que cerca os cumes aumenta a velocidade. Faz parte dessa região longínqua.
O que não fazia parte era o local onde estacionamos o 4×4, quase a meia-noite, num breu total, para chegar à casa de German. Nem o frio e a chuva me incomodaram, mas se tivéssemos parado duzentos metros adiante, teríamos andando somente alguns metros, ao invés de um quilômetro em terreno encharcado e que chafurdávamos em lama. Além de desafiar cercas de arame farpado e de se rasgar em galhos. Erro de localização.
German Genskowski, parece um personagem de Guimarães Rosa. Rosto marcado, não pelo sol, mas pelo frio. Sempre de chapéu de couro, camisa xadrez sob um casaco de gola de pele de carneiro e um grande amor pela terra. Mora com sua mulher numa casa pequena, mas nos hospedou com muita alegria. Nos serviram pratos à base de carneiro e truta. Toda eletricidade ali é eólica. German se enamorou pela região e fincou raízes. “Até a pouco, vinha a cavalo, com a mulher e com minhas duas filhas”, recorda com entusiasmo. Hoje a estrada que vai ligar Porvenir a Puerto Willians, povoado mais austral do planeta, passa bem perto de sua casa.
Ao amanhecer, o mosaico de cores da tundra que circunda a casa é digno de nota máxima. A tundra é uma espécie de vegetação que recobre rochas e campos alagados com musgos e liquens, formando uma mistura de cores que vão do vermelho passando pelo amarelo até os verdes. Essa visão deixaria o movimento dos pintores fauvistas, aqueles que procuravam tons mais puros e vibrantes, achando que foram bem poucos ousados na aplicação das cores. O clima de fantástico permanece com as sombras gigantescas que se refletem sobre o Lago Fagnano, e das árvores retorcidas pelas fortes rajadas de vento e carregadas de epífitas e cabelos de bruxa.
Terra do Fogo é um nome mítico e chamá-la simplesmente de prístina, não faz jus às suas sofisticadas paisagens. É impossível alguém por lá e não deixar se dominar pela imaginação e pela fantasia do desconhecido, do misterioso, do improvável. Nem poderia ser diferente, pois por si só ali a paisagem é superlativa.
*Matéria publicada originalmente em nosso site Viagens Plásticas, do Viagem Estadão