Mais do que um fato histórico ocorrido há mais de cem anos, no qual a realidade foi mais poderosa que a ficção, vive-se a aventura de Sir Ernest H. Shackleton (1874-1922) que, ao comandar uma travessia antártica, privilegiou o que há de mais sagrado na liderança: a lealdade a seus subordinados
Tudo começou onde eu queria estar. Ilha Geórgia do Sul. Vim atrás da saga do irlandês Schackleton e sua fracassada expedição, em 1914, ao tentar cruzar o continente antártico a pé. Esta ilha foi ponto de partida da expedição e também peça-chave para o resgate de sua tripulação, depois de quase dois anos à deriva no continente antártico.
Para eu chegar lá foram dois dias de viagem, a partir das Malvinas, no pior mar do mundo.
Durante todo esse período nossa embarcação se debateu com ondas violentas rebentando de encontro à proa. Elas nos erguiam no alto de suas cristas para, em seguida, nos lançar no abismo que se abria em verdadeiras montanhas-russas. O barco adernava muito, e sua estrutura vibrava, emitindo rangidos que davam a impressão de que a qualquer momento tudo iria se desfazer. Estávamos atravessando a Convergência Antártica, uma faixa marítima que circunda o continente gelado e onde as águas frias se mesclam com as mais quentes, que descem do Norte.
Enfim chegamos! No primeiro momento sou arrebatado pelo deslumbramento de aportar em Stromness, antiga estação baleeira norueguesa, envolta pelas montanhas denominadas Alpes Antárticos. Um lugar farto de beleza do qual o turismo ainda não se apropriou. A paisagem ali é a mesma do tempo dos primeiros aventureiros.
Pouco depois, estou em frente à porta de uma casa de madeira que servia como residência ao gerente da estação e onde, em maio de 1916, chegou, pedindo ajuda, um surrado Shackleton disposto a salvar sua tripulação aprisionada nos gelos antárticos. Também bati nessa porta.
Agosto de 1914. Aqui começa a história. Sob o pomposo título de “Imperial Transantártica Expedição” e a bordo do barco Endurance (Resistência, em inglês), Shackleton e seus marinheiros deixavam a Inglaterra uma semana antes do início da Primeira Guerra Mundial. Seu destino, Ilha Geórgia do Sul e de lá o continente gelado onde pretendiam atravessar a pé os 3.000 quilômetros que separam o Mar de Weddell ao de Ross, passando pelo polo Sul.
Aqui vale reportar um pouco ao início do século passado. Nesse tempo as circum-navegações e travessias entre oceanos já eram chamadas pelos navegadores de “Rotas das Moças”. Vivia-se então a época heroica das expedições polares. E as conquistas eram comemoradas com alarde no mundo inteiro, como são hoje os grandes campeonatos mundiais de futebol. Mas a briga era de cachorro grande. Nações com tradições marítimas como Inglaterra, França, Estados Unidos, Bélgica, Alemanha e a Noruega não mediam esforços para os grandes feitos.
O pau comeu feio até entre conterrâneos americanos, como foi no caso da conquista do polo Norte. Reivindicado por Frederick Cook, em 1908, Robert Peary ganhou no tapetão quando lá chegou, quase um ano depois, em 1909. Em 1911, foi a vez do Império Britânico ser humilhado pelos noruegueses. Roald Amundsen vencia a corrida com o inglês Robert Scott e se tornava o primeiro homem no polo Sul. Vejam que desde aquela época ser vice não valia nada.
Agora a glória do Reino Unido estava nas mãos de Shackleton. O percurso transantártico era o último dos grandes desafios de uma aventura. Uma jornada ainda maior que a chegada ao polo Sul. Assim diziam os jornais da época.
Shackleton não era novato na Antártida. A primeira vez, em 1901, foi como voluntário em uma expedição capitaneada pelo próprio Scott. Seis anos mais tarde, Shackleton abortou sua missão a 160 km de alcançar o polo Sul. Desistiu em nome da sobrevivência de seus homens já abatidos pelo frio, fome e cansaço.
Ele estava agora na terceira expedição e, sem dúvida, a mais importante. Em 5 de dezembro de 1914 o Endurance deixava a vila de Grytviken, na Geórgia do Sul, com 28 pessoas a bordo e mais 69 cães canadenses treinados para puxar trenós, e um gato intruso.
Depois de 45 dias de navegação, a apenas alguns quilômetros do continente antártico, o Endurance ficou preso nos campos de gelo resultante do congelamento da água – as banquisas. Para ser ter uma ideia, esses bancos de gelo podem, dependendo do frio, atingir até 60 metros acima do nível do mar. Começava ali a agonia da expedição. À deriva, fortes correntes geladas arrastaram a embarcação aprisionada pelo gelo que foi ziguezagueando por quase mil quilômetros a noroeste, até que em 21 de novembro de 1915, o Endurance, já quase todo adernado, foi definitivamente esmagado pela pressão dos blocos de gelo. Afundou.
Nesse momento a aventura flertava com o desastre total. Nancy Koeln, historiadora de Harvard, escreveu recentemente no ‘Times’ que seu estudo sobre a liderança de Shackleton, na missão que se transformou em luta pela sobrevivência, pode servir como modelo de capacidade para reagir à mudança das circunstâncias. Ele corria riscos com bom senso.
Nos próximos cinco meses, os sobreviventes encontrarão pela frente sempre um cenário no qual a natureza comandava cada ação. Ora escondendo uma fenda enorme na banquisa, ora detonando furacões ou denunciando placas de gelo frágeis. Mas Shackleton não caminhava às cegas. Primeiro, puxando dois botes salva-vidas, que serviam também de abrigo, e depois remando, os 28 marinheiros (eles já tinham sacrificado e comidos todos os cães; do gato não se tem notícia) alcançaram, em 14 de abril de 1916, a Ilha Elefante. Um lugar tão inóspito quanto qualquer outro da Antártida. Mas estavam pisando em terra firme depois de 497 dias no gelo e no mar.
A insaciável sede de atravessar a fronteira e descobrir o que havia do outro lado continuava viva em Shackleton, mas naquele momento ela já fora substituída pelo que o escritor Joseph Conrad qualifica como “imorredouro respeito” à sua tripulação. Certamente por isso os 27 tripulantes se referiam a ele como the boss, o chefe.
A esta altura, as reservas de alimento tinham chegado ao ponto crítico. O inverno antártico se aproximava. Embora sempre motivados pelo boss, não era fácil manter a tripulação unida e em bom estado mental. Shackleton sabia que a possibilidade de algum navio aparecer naquelas bandas era mínima. Face à adversidade só restava tentar viver. E a possibilidade de sobrevivência só tinha uma saída. Era remota e terrível. Mas era a única.
Mesmo beirando o impossível, Shackleton toma a decisão de buscar auxílio na Ilha Geórgia do Sul localizada a 1.700 km dali. Mas como? Acreditem: remando em um bote salva-vidas por aquele mar hostil da Convergência Antártica. Aquele mesmo que tentei descrever no início deste artigo.
Ele sabia que poderia encontrar no meio do caminho faixas de ventos fortes que os marinheiros chamam de Quarenta Rugidores, Cinquenta Furiosos e Sessenta Uivadores, e que de repente podem vir todos ao mesmo tempo e levantar ondas de até 18 metros. Mesmo assim, Shackleton partiu em 24 de abril, com cinco marinheiros, no bote salva-vidas de 6,6 metros de comprimento, o James Caird.
Eu vi esse bote. Está exposto em uma sala especial no Dulwich College, perto de Londres e onde Shackleton estudou. Inacreditável que seis pessoas, com um sextante e um cronômetro, tenham feito tal travessia naquele barquinho. Coisa de louco, ou não?
Continuando. Shackleton chegou em Geórgia do Sul 17 dias depois, em 10 de maio. Nesse momento, talvez porque a realidade estivesse se aproximando cada vez mais do fantástico, the boss chega à ilha, mas, devido às fortes correntezas, infelizmente aproxima-se pelo lado onde não existiam estações baleeiras. Como as arrebentações fortes não permitiam nova saída com o bote, o jeito foi atravessar a pé os 37 quilômetros que o separavam da vila baleeira de Stromness. Com dois homens e uma corda, ele teve fôlego para escalar montanhas, glaciais e picos nevados durante 36 horas seguidas, sem descanso, até chegar à casinha do chefe da estação. Ali pediu urgência para resgatar seus três marinheiros do outro lado da ilha, bem como os 22 companheiros retidos na Ilha Elefante.
De imediato, ele consegue ainda no mesmo dia uma baleeira para resgatar os três marinheiros e o barco James Caird. Conta-se que na chegada em Stromness o barco (sem dúvida este é o verdadeiro bote salva-vidas) foi carregado como uma relíquia sagrada.
A partir daí nova aventura começa. A Inglaterra em guerra não se empenha em resgatar seus marinheiros na Ilha Elefante. Três tentativas serão realizadas, em vão. Obstinado, Shackleton pede auxilio ao governo chileno. Este disponibiliza um rebocador, o Yelcho, mas deixa toda a responsabilidade ao seu comandante, o capitão Pardo.
Da mesma linhagem de um Shackleton, Pardo aceita o desafio: arriscando-se sob o mais rigoroso inverno, parte junto com o explorador na tentativa de resgatar os outros 22 marinheiros.
30 de agosto de 1916. Quase quatro meses depois de chegar à Geórgia do Sul the boss alcança a Ilha Elefante. Merece ser citada aqui, em tradução livre, uma página do diário de Shackleton: … “não saía do convés e com o binóculo tentava achar algum ponto escuro que denunciasse a presença de meus homens na ilha. Quando via algum me animava, mas era ora um leão-marinho ora uma foca. De repente vi alguém acenando. Meu Deus! Agora eram dois, … três…cinco …22. Nenhuma vida perdida, e nós passamos pelo inferno”. Quase um mês depois todos desembarcavam em Punta Arenas, Chile, e puderam voltar para casa.
Meu fetiche pela ilha não terminou. Vou até a vila pesqueira de Grytviken, ponto de partida da expedição transantártica. Esse antigo povoado carrega mais história. Ali, em 5 de janeiro de 1922, a bordo do Quest, Shackleton está de volta a Geórgia do Sul e prepara o início da quarta expedição à Antártida, em uma viagem cuja missão nunca foi bem esclarecida. Especula-se hoje até uma caça ao tesouro do Capitão Kidd. Mas um fulminante ataque cardíaco abate aquele que é considerado o maior herói polar de todos os tempos, mesmo sem nunca ter conseguido terminar suas missões.
Uma sirene trila desenfreada. É o último aviso para embarcar. Enlevado pela Geórgia do Sul e sob uma forte tempestade de neve ainda consigo visualizar no bloco de granito que se ergue sobre o túmulo do the boss as palavras do poeta Robert Browning: “Penso que o homem deveria se esforçar ao máximo para alcançar aquilo a que está predestinado”.
Reportagem de Heitor e Silvia Reali publicada originalmente na Revista Brasileiros:
http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/06/06/uma-aventura-ao-fim-do-mundo-em-busca-de-shackleton/#.U5I8OHJdWC0