Raras são as oportunidades de contato com uma arte genuinamente brasileira. De simples utensílios domésticos indígenas, as panelas de barro, da região de Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo, passaram a ícone da identidade cultural capixaba.
A cerâmica utilitária, como panelas, potes, moringas ou alguidares, sempre foi um trabalho feminino, por exigir ao mesmo tempo delicadeza e força e por estar ligada a preparação dos alimentos. Nossas primeiras artistas, as índias, gostam de contar aos seus filhos histórias que ilustram o quanto seu povo é integrado à natureza. Uma das lendas narra como elas aprenderam a amassar e moldar a argila com o pássaro joão-de-barro. De lá para cá, quase nada mudou nesse ofício arcaico e simples que é a arte da cerâmica, que une terra, água, ar e fogo.
A técnica cerâmica das ‘paneleiras’ utilizada é secular e se caracteriza por modelagem manual, queima a céu aberto e aplicação do tanino, tintura retirada de árvore do mangue, que dá a cor negra à peça. Os instrumentos para o acabamento são rudimentares: uma pedra de rio para alisar e uma vassourinha de muxinga (planta rasteira nativa do lugar) resistente ao calor e ao impacto e utilizada para bater o tanino. Na hora da queima, termômetro não existe. “Eu conheço a hora para tirar quando a panela muda de cor. É sabedoria simples”, ensina a paneleira Eloísa Helena.
O saber é transmitido de mães para filhas. De caldeirões rasos segundo traços históricos descritos desde o começo do século 19, pelo naturalista Saint-Hilaire, a panela de barro é o recipiente indissociável das moquecas e tortas capixabas feitas à base de peixes e frutos do mar.
Para a cozinheira Mara Fernandez Soares, da praia de Ubu, em Anchieta, um dos segredos do especial sabor da moqueca capixaba é que a panela de barro permite que o caldo engrosse naturalmente. Mas enumera outras vantagens: a panela vai direto do fogo para a mesa, mantém a comida quente por mais de trinta minutos, não deixa resíduos, com as de alumínio, e não precisa arear
As panelas de barro também são ótimas, quer para deixar o caldo do feijão mais encorpado, quer para deixar a farofa bem soltinha, confirmando as alquimias perfeitas entre as delicadezas e as forças dessa panela para o alimento.
Renato Pacheco e Luiz Santos Neves afirmam no livro Mão e Obra – Artesanato no Espírito Santo, que as panelas de barro são uma tradição de várias gerações de ceramistas capixabas. Inicialmente, as panelas eram produzidas apenas na Quaresma, época de maior consumo de frutos do mar e peixes. Aliadas perfeitas da culinária desse Estado, as panelas passaram a ser produzidas o ano todo,
Pela sua importância cultural, as Paneleiras de Goiabeiras se tornaram em 2.002 Patrimônio Imaterial de nosso país, outorgado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).