Sempre respeito o acaso.
Tudo por causa de um mote que me persegue em todas as viagens:
“liberte sua mente que sua bunda vai junto”
A máxima de George Clinton, cantor americano e criador do Funkadilic, na década de 1970, se apresenta quando menos é chamada, e me faz desviar do meu projeto original.
Um dia, saindo de carro na região francesa de Rhône-Alpes, enveredei por estradinhas e mais estradinhas, cheias de nada num lugar que depois soube se chamar Ardèche. Tentando me orientar como sair dali para meu destino Lyon, pedi ajuda a um camponês. Antes que perguntasse qualquer coisa, ele disse que eu estava perto, era só seguir em frente que dava de cara com a Gruta de Chauvet. Gruta de Chauvet? Mas eu não estava indo para lá! E por que não?
Com o pé na estrada da liberdade, há 23 anos, naquele mesmo lugar, três espeleólogos amadores, Christian Hillaire, Eliette Brunel e Jean-Marie Chauvet, também resolveram xeretar por ali.
A vida é assim. Segue seu ritmo cotidiano até que alguma coisa excepcional acontece. Desta vez a virada de mesa ocorreu no plano da arte, e começou com um grito: “eles estão lá dentro, aprisionados pelo tempo!”. Eles – rinocerontes, elefantes, bisões, leões e ursos das cavernas. O tempo – 36 mil anos atrás. O susto não gerou reação de fuga, do tipo “pica a mula meu”, e sim de profunda admiração.
Perturbador. É a palavra usada com mais frequência para definir o suntuoso conjunto de pinturas paleolíticas inscritas em uma caverna selada por desmoronamentos durante milênios. A amplitude e o realismo dos desenhos, literalmente, vieram à luz, e ali se destacava um fenomenal efeito de tridimensionalidade.
Ao mesmo tempo antiga e magistral, ela é também revolucionária sobre a origem do homem moderno. Quem teria pintado esses afrescos? Ainda hoje é difícil acreditar que aqueles artistas de outrora dominavam o desenho com tamanha maestria, dando nova liberdade à perspectiva e, assim, ao movimento.
Não se sabe durante quanto tempo ali convergiram para criar uma arte tão revolucionária que, num futuro distante, quebraria o conceito até então estabelecido. Esses artistas sem rosto e sem nome serviram-se das paredes como se fossem telas e murais; os afrescos, alguns com dez metros de comprimento, registram o que marcava sua existência. Para gravar as cenas utilizam carvão, argila vermelha e pigmentos.
Anteveem, nos volumes das paredes, as saliências e reentrâncias necessárias para compor a musculatura de suas figuras e assim recriar, com esse recurso natural, a ação de seus personagens.
Mas o que torna a Gruta de Chauvet-Pont d`Arc, como passou a ser denominada, tão especial e revolucionária? A resposta é simples. Com o desmembramento dos estudos de sua arte suntuosa realizados nos últimos anos, ela se tornou um fenômeno entre os pesquisadores. Análises por meio do carbono 14 fornecem datas que ultrapassam 35 mil anos, fazendo de Chauvet a mais antiga de todas as cavernas conhecidas que contêm esta arte (Lascaux, Cosquer e Niaux, todas na França, e Altamira, na Espanha, datam de 17 mil anos atrás).
“Se a mais antiga de todas elas inclui justamente o melhor, então as nossas teorias sobre a linearidade do processo artístico devem desmoronar”, afirma Jean Clottes, autoridade em arte paleolítica e o primeiro a autenticar os afrescos, em 1994.
Ali está a primeira manifestação artística que conhecemos até agora. Na excelência de sua qualidade talvez residam o embrião da escultura e o elo perdido da origem da alma humana moderna. Mas ela vai muito mais além dos primórdios da representação figurativa que até então se conhecia.
Quando cheguei a Gruta de Chauvet -Pont d’Arc estava fechada com ferrolho eletrônico. Ela jamais será aberta à visitação pública. Serão poucos e raros os pesquisadores que lá poderão entrar. Tudo para evitar que seu conteúdo sofresse danos irrecuperáveis, como aconteceu com Lascaux e Altamira que tiveram sérios problemas com a contaminação atmosférica e com as hordas de turistas.
Mas, por minha sorte e de todos apaixonados pelas pinturas paleolíticas, um museu foi recentemente inaugurado com a réplica perfeita da gruta modelada numa técnica de 3D. Lá estão reproduzidas com perfeição suas galerias, assim como os volumes e a ambientação dos painéis ornamentados com a mais suntuosa das artes parietais.
Onde:
Vallon-Pont-d’Arc, no departamento de Ardèche, sul da França
Agradecimentos:
Ministério da Cultura e da Comunicação da França que gentilmente cedeu os direitos das fotos
*Não deixe de assistir o documentário A Caverna dos Sonhos Esquecidos do cineasta Werner Herzog
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