Nada como acordar em um pequeno espaço no topo de um rochedo, com vista panorâmica da natureza selvagem do litoral norueguês, com seus fiordes e falésias. O mar, naquela hora, estava daquele jeitão com toda sua estranha violência. Suas altas ondas partiam para cima e sem freio arremessavam-se contra as rochas e a cada encontro criavam um rebuliço de espumas que se diluíam em névoas. A moldura sonora orquestrada pela algaravia de gaivotas arrebatava. Não via algo assim, desde “Os Pássaros” (Alfred de Hitchcock, 1963), só que desta vez real. Ventos que surgem sem cerimônia de todos lados, completam este lugar que permite um clima fantasioso para sonhar e estar só. Um farol!
Algo me fascina nessas sentinelas do mar. Recentemente o filme “O Farol” (Robert Eggers, 2019), na sua ambiguidade entre sonho e o real, e mais no HQ “Solitário” do cartunista Christophe Chabouté sobre a vida de um faroleiro, trouxeram-me de volta o desejo de viver um tempo num farol. O farol deseja ser visto com os olhos do passado, de um tempo em que na literatura era um dos grandes instigadores de histórias de sonhos ou terrores. Mas a grande maioria deles vai se apagando graças ao GPS e outros avanços tecnológicos. E pensar que uma fogueira encimava o mítico farol de Alexandria, que com quase 100 metros de altura era uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo e destruído no século 14.
Muito mais que as imagens sugerem, por trás do farol está seu enigma que se desdobra em mitos e símbolos, mas não quero entrar nessa questão. Só sei que o prazer das novas descobertas e o acaso no meu flanar pela Noruega me levaram a um farol-hospedagem.
Dos mais de 200 faróis da costa norueguesa, aproximadamente 60 foram transformados em originais pequenas hospedarias, a maioria no sudoeste do país. Locais para reviver a epopeia dos faroleiros em perfeita solidão, ‘a tu per tu con il mare e il vento’, como diz um ditado italiano. As acomodações, geralmente na casa do guarda-farol, são simples mas aconchegantes. A sensação de pernoitar numa hospedagem singular incentiva o viajante a novas emoções. É aí que a imaginação fértil brilha. “Estou aqui”, parece dizer a sentinela do mar quando seu feixe de luz dá uma volta percorrendo a escuridão. “Eu estou só no Universo”, grito. Impossível não se abastecer de reflexões num lugar desses.
Tempo e esforço são necessários para chegar em alguns deles, pois muitos são acessados só de barcos. Algo que gosto, porque o trajeto já é destino. De repente, o perfil majestático e lá está ele, em contraluz, no meio do nada, numa única rocha às vezes do tamanho de uma quadra de tênis que aflora à superfície do mar.
Devido à sua localização idílica e dramática de frente para o mar, essas hospedagens são cada vez mais populares para experiências únicas. Portanto dependendo da época, principalmente verão, é preciso fazer reservas com antecedência. Considere também verificar se a hospedagem é completa, ou como é comum na Noruega precisar levar sua roupa de cama e banho. Em muitos dos faróis também é necessário levar comida.
Depois de duas noites, e uma delas embalado numa orgia de trovões, deixo o farol de Lyngor, na ilha de Kjeholmen, em Tvedestrand, a 240 km a suldoeste de Oslo, com o desejo extraordinário de horizontes sempre novos, e o fôlego de ir adiante e buscá-los.
crédito: viramundo e mundovirado*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão