Ah!! A criatividade do artista brasileiro. Sempre me surpreende. E quando pesquiso sobre como chegou aquele resultado, aí me encanto. E isso também se confirmou quando descobri os “Abridores de Letras” da Amazônia.
Estávamos no porto de Santarém, Pará, aguardando sob um solzão que o barco que nos levaria para Óbidos conseguisse uma brecha para estacionar naquele mar de embarcações sobre o dourado da água do rio Amazonas. Se não encontrasse uma vaga, nos avisaram que precisaríamos descer pela rampa estreitinha, entrar no barco da frente, cruzar todo ele ziguezagueando entre sacos, sacolas, caixas, e passageiros já acomodados nas redes, e passar sobre uma tábua improvisada para chegar ao nosso barco.
Isso tudo equilibrando mochila, câmera fotográfica e uma mala de rodinhas totalmente imprópria para a viagem. Me senti como naquela prova, tipo olimpíada do Faustão, do programa domingueiro. E quando ouvi o menino avisando a plenos pulmões que “São Pedro já partiu e o Amor de Jesus tá chegando”, imaginei o final dos tempos!
Mas, eram apenas os nomes de alguns barcos. Não conhecia a tradição de batizar as embarcações, seja qual for seu uso ou tamanho, com o nome de santos e santas. É uma garantia a mais para quem enfrenta águas endiabradas todo santo dia. Além do nome abençoado no bordo dos barcos, as cabines e cascos podem exibir citações bíblicas e salmos.
Para navegar ainda mais nos trinques, os donos das embarcações também acrescentam pinturas como signos, bandeiras, escudos, paisagens com por de sol, grafismos e até sereias.
Assista o vídeo ‘Na Amazônia um alfabeto que viaja’
As letras que compõem os nomes, precisam antes de tudo chamar atenção com colorido vistoso, geralmente nas cores primárias. Depois vêm os enfeites desenhados no capricho: sombras fortes e grandes para dar maior destaque, volteios, curvas, bicos, pontas, remates, e arabescos. Algumas letras são divididas em duas partes, e o que mais a criatividade do pintor imaginar. Verdadeiros mestres nesse ofício são chamados de “Abridores de Letras”.
E como nasceu esse alfabeto amazônico, único e original? Segundo pesquisas da designer paulista Fernanda Martins, o padrão dessas letras pode ter tido influência, de início, da tipologia vitoriana em voga em 1870. Nos portos de Belém e Manaus, na época áurea da borracha, chegavam jornais, cartazes, e caixas com mercadorias importadas, cuja procedência e conteúdo vinham impressos nas embalagens geralmente com a fonte vitoriana.
E, os primeiros abridores de letras devem ter curtido aquelas elaboradas letras. Mas criativos não se limitaram às fontes, e foram reinventando formas e cores mais ao gosto amazônico. E continuam ainda hoje a pescar influências com as letras que observam nos barcos de outras localidades amazônicas como Abaetetuba, Curuçá, Bragança, e Ilha de Marajó.
Em tempo: os barcos viajam nesse mundão de águas, marés, tempestades e pororocas com a proteção dos santos. Nós também não, mas não dispensamos um seguro viagem. No nosso caso foi o da Vital Card.
Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão