Desejo encontrar, quando viajo, tudo o que esperava, só que para melhor ainda. Também quero topar com o inesperado, desde que suscetível de controle. E uma das regras que considero importante para bem aproveitar o destino é o juízo de valores. Evito fazer comparações, pois às vezes a realidade surpreende até as ficções mais ousadas. E foi exatamente isso que aconteceu em Madagascar.
Não me contaram, eu vi. A ilha de Madagascar é um elogio à diversidade. Fica um tanto fora de mão, a leste da África, mas de longe ganha em exuberância. Uma arca de Noé à deriva há 160 milhões de anos, onde plantas e animais seguiram uma evolução autônoma. Sua natureza é síntese perfeita das mais belas paisagens do mundo, e a flora, única. Das 12 mil espécies existentes, 9,5 mil são endêmicas. Para se ter uma ideia dessa multiplicidade, em todo o continente africano só existe uma espécie de baobá, enquanto que na ilha são sete tipos.
Quando o assunto é geologia, Madagascar também é a bola da vez: um verdadeiro museu de mineralogia com destaque para a prata, ouro, níquel; gemas semipreciosas, como topázio, água-marinha, jaspe, ônix, celestite (de um azul suave), turmalinas em tons diversos, zircônios, cristais, e ainda o especial âmbar.
Mas, nessa natureza plural e singular na qual todas as ciências querem fazer as honras da casa é a zoologia que sai na frente e ainda reforça um ambiente de fábula com os lêmures – os mais encantadores animais que já vi! São trinta espécies que vivem em toda a ilha, desde o maior e o mais elegante dos lêmures, o indri, com seu característico grito humano e que pode ter a altura de uma criança de cinco anos. De pelame branco e negro, se locomove saltando lateralmente com grande impulso de até 10 metros de distância. É quase coreografia, bela e especial, me sugeriu um bailado.
Outro hóspede gracioso da floresta é o lêmure sifaka, com penugem branca e máscara negra sobre o nariz. Além deles o catta, com uma longa cauda anelada de branco e preto, e os encantadores pequenos lêmures noturnos, verdadeiros gnomos da floresta.
Cruzo o país até chegar à cidade litorânea de Tulear, sul da ilha. Porém, meu olhar inaugural dá com uma bunda, uma não, duas ou três. Todas acocoradas numa bela praia fazendo cocô. Mas, o que é isso? Que merda! Desisto do meu passeio pelas areias e me dirijo para o centro do povoado. Na primeira esquina outro sobressalto: um homem impávido também fazia cocô na calçada. Não adiantou mudar de caminho porque sempre encontrava homens e mulheres, tranquilamente, fazendo suas necessidades à vista de todos. Um mal súbito intestinal rendeu a cidade? O proprietário do hotel riu de minha cara incrédula ao voltar do breve passeio. Explicou-me que a etnia da região não admitia banheiros em suas casas, considerados tabus e locais de maus espíritos.
Outro lugar, outro choque. Desejando aproveitar a luz dourada do amanhecer, saí às pressas do hotel a fim de fotografar os arrozais. Para compensar a falta do café da manhã, tirei do bolso uma barra de cereal para comer enquanto caminhava. Não havia muita gente, naquela hora, na rua. Mas logo percebi que a hospitalidade não era o ponto alto daquele lugar: olhavam-me com cara fechada e muitos mudavam de caminho para não cruzar comigo. Será que estou com berebas? Intrigado, me senti inseguro e voltei para o hotel. Novamente o porteiro veio me salvar. A culpa era da barra de cereais, pois a etnia dali não admite comer nas ruas, em público. É total falta de educação.
Trafegando entre contrastes absolutos em Madagascar, onde o povo malgaxe, um dos mais cordiais que já conheci, subdividido em 18 etnias (todas identificadas pelo modelito do chapéu), encontrei um mundo inusitado e rico de sensações. Mesmo com algumas desagradáveis surpresas, a viagem não alterou o meu prazer das descobertas, e se tem um lugar no mundo que pretendo retornar em breve é Madagascar.
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens plásticas do Viagem Estadão