Destino Lyon. Não via a hora dessa viagem chegar. Ela seria um presente a mim mesmo.
Assim, deixo o aeroporto Charles de Gaulle direto à segunda mais importante cidade francesa, com o pensamento a 300 km/h, literalmente, pois estou no TGV (trem de alta velocidade).
Absorto, já antevejo, de uma de suas colinas gêmeas, a Fourvière, ou a Croix Rousse, a metrópole dos lyonnais, fundada pelos romanos. Ali, vou procurar um hotel com bela vista para os rios Rhône e Saône, que cortam a ville, e seguir direto a um bistrô para saborear um Beaujolais.
Depois, partindo do zero, como gosto de fazer, livre dos cartões-postais, vou zanzar, com o raro sabor de estar feliz para as descobertas e histórias de seus habitantes, na expectativa que Lyon me traga uma surpresa atrás da outra.
Foi pensando em tudo isso que, num cara a cara inesperado, reparei que no assento à minha frente, uma senhora, com vestimenta heteróclita, sendo a única peça decifrável uma echarpe colorida (aliás, as mulheres ficam sempre mais bonitas e elegantes quando as vestem), mirava-me com ar de especialista.
Sem saber como, a francesa descobriu meu idioma e desembuchou um português de Trás-os-Montes perfeito, com pá!, gajo e tudo o mais. Boa de goela e de conhecimento, Marie, ao ouvir meu nome, e sem piscar, relatou que o primeiro prêmio literário no mundo foi concedido a Dionísio, em 367 a.C. com a tragédia “O Resgate de Heitor”. Meu ohhh! a entusiasmou e ela deu novos exemplos de Ettore, Hector, e o escambau, até parar no físico Ettore Majorana que usava cabelos muito compridos para evitar perder meia hora de seu tempo no barbeiro.
Quando disse que estava indo a Lyon, listou-me uma série de dicas, desde L´Hôtel de Ville ao mais completo museu de marionetes do mundo, o Gadagne, que conta a origem sacra dessa arte; do Museu de Arte Contemporânea, onde anos atrás foram expostas obras do nosso Bispo do Rosário (puxa, ela sabia até isso!); às ruas mais singulares de Vieux Lyon, reduto dos comerciantes de seda, que durante o século 18 fizeram dessa cidade uma das mais importantes da Europa.
Finalmente me fez prometer visitar os traboules, escadarias secretas que se tornaram célebres na 2ª Guerra, pois serviram de fuga para os partisans, comandados pelo herói da pátria, Jean Moulin, na luta contra o nazismo.
O excesso de informações começava a me desagradar. Era eu que tinha que revelá-las! Para encerrar a conversa, disse que esses pontos turísticos não faziam parte do meu interesse, e sim a arquitetura de vanguarda. Pronto. Marie abriu um sorriso, dizendo ser arquiteta.
E o monólogo reiniciou com a proeza do arquiteto Jean Nouvel ao desenhar o refit da Ópera de Lyon, com sua cúpula de vidro. Dissertou sobre Renzo Piano e sua La Cité Internationale, e embalada ressaltou que eu não deveria perder a Cidade das Estrelas, projeto de Jean Renaudie; e admirar o novo aeroporto, obra futurista do espanhol Calatrava.
No exato momento que ela engatava uma quinta para discorrer sobre a arquitetura renascentista, gótica, art nouveau da cidade, respirei fundo, criando coragem para informar que não desejava saber nada sobre esses estilos.
Queria mudar o jogo e me safar de Marie. Refugiei-me no vagão-restaurante. Não adiantou. En passant, ela se mostrou que também era craque em gastronomia. E como. Inicie seu roteiro pelo Mercado Paul Bocuse, autêntico laboratório de sabores – ensina. Lá você encontrará mais de 100 tipos de queijos. Deu sugestões dos melhores bouchons (guardiões da tradição e da cozinha popular), entre eles o bistrô de Saint-Jean.
Para piorar, me fez anotar em francês mais de cinco tipos inesquecíveis da culinária local, e aí enjoei quando ela me deu a receita de um chair de tourteau et chou de fleur, gelée de crustacés et caviar osciètre.
Essa desmancha-prazeres não se mancava, pois não estava me deixando nenhuma surpresa ou descoberta em Lyon. E mais, ela não precisou vasculhar a memória para dizer que a cidade era terra natal de Alain Prost, que tanto infernizou a vida de Senna; de Saint Exupéry, de Allan Kardec, de André Ampère, pai do eletromagnetismo.
E mais, que foi na história dessa cidade que os cartunistas Albert Uderzo e René Goscinny se inspiraram na cultuada série em quadrinhos ‘Asterix e Obelix’; e tantos outros que poderiam me interessar, mas que agora já estavam me tirando do sério.
E o Diabo, também não nasceu aqui não? – Perguntei meio ríspido. Nem assim ela se perdeu, e categoricamente assegurou que o diabo era basco.
Mon Dieu! Meu calvário já durava duas horas. A salvação veio com o autofalante anunciando que a próxima parada era a Estação de Lyon. Ela levantou-se e dirigiu-se à saída, não antes de acrescentar que eu deveria me hospedar no Villa Florentine, nas colinas da cidade, onde teria excelente vista dos rios, e que ainda era perto de vários bistrôs, excelentes locais para relaxar acompanhado de uma taça de Beaujolais.
Pasmo, continuei sentado. Na hora lembrei-me de um quadro cômico do programa Praça da Alegria, na TV Record. Em um banco da praça, quando Walter D’Avila ia começar a ler um livro, Manoel da Nóbrega, sentado ao lado, contava todo seu enredo. Fulo da vida, D’Avila abandonava o livro e ia embora. Assim me vi. O trem partiu e eu de pirraça com ele, fui vendo a placa “Lyon” ficar cada vez mais distante.
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