Nesses tempos de isolamento como falar de viagem? Esta pergunta vem me incomodando desde o início da pandemia. O que desejo, como jornalista de turismo, é instigar os viajantes aos destinos que me encantaram, sejam pela natureza, pela cultura ou hospitalidade. Mas, “não tem viagem segura no momento. Não é seguro para quem vai, não é seguro para quem mora”, como disse minha colega do Estadão, a jornalista Mônica Nóbrega. E aí! Qual sua opinião?
Sou um viajante compulsivo, daquela espécie de ave migratória que precisa viajar, e não passar o tempo como o Snoopy, bem definido por Saul Austerlitz, do The New York Times, ‘deitado em cima da sua casinha, solitário, sonhando com viagens que não pode viver’.
Na infância, viajei num sem número de aventuras fabulosas nos livros e quadrinhos que moldaram meu imaginário. Estive em Opar, na África, onde se esconde o tesouro de Tarzan; também cheguei em Bangalla, região africana da dinastia do Fantasma que ali reina há mais de 400 anos. Fui mais longe, até Mu, o reino pré-histórico de Brucutu. Na cola dessa literatura, viajei para Ilha de Speranza, onde foi dar Robison Crusoé. Dali um pulo, e fui adotado por Sinbad e participei de suas aventuras. Mas, minha identidade se encontrou nos livros do genial escritor Emilio Salgari, dos quais até hoje guardo todo desgrenhado O Corsário Negro. E, ainda em cartaz na minha biblioteca se encontra A Ilha do Tesouro, de Robert L. Stevenson.
Mas a hora é de puxar o freio para as viagens, na marra, pois mais de 100 países não querem viajantes brasileiros. Assim, e antes de entrar numa crise existencial, embarquei numa expedição literária além-mar. Viajei nos livros, e como viajei, aliás ainda estou viajando. Conto aqui parte do meu roteiro.
A fantasia pertence sim, ao universo do adulto. E quem disse que você não pode entrar num livro? Na minha jornada literária que já dura mais de um ano, comecei como tripulante no Pequod, A releitura de Moby Dick, de Herman Melville, numa edição primorosa com 280 ilustrações de Rockwell Kent e Poty, da José Olympio editora, de 1957, presente da poetisa Lourdes Ricardo, é considerado um dos dez maiores romances da literatura mundial. Um livro que fala da vida no mar, da pesca baleeira, dos hábitos e características do cachalote. O livro tem uma narrativa filosófica paralela a narrativa da aventura. No final, como disse o escritor Paulo Nogueira ‘que cada leitor formate sua baleia’.
Já em terra, fui companheiro de estrada do escritor Martin Puchner, em suas múltiplas viagens pelo mundo para escrever como a literatura transformou a civilização em seu livro O Mundo da Escrita. Puchner repassa toda a história humana sob a perspectiva da literatura. Um bom livro deve ter um mistério a ser revelado, páginas que provocam curiosidade, e a percepção que estamos viajando juntos, locais e histórias que surgem e nos surpreendem. Este livro tem tudo isso.
Em seguida fui convidado por Andrew Solomon para acompanhá-lo por Lugares Distantes. Que livro meu!! Este, um daqueles livros que gostaria de ter escrito, pois reúne arte e viagem. E o que fazem as viagens e os livros? Eles alternam a maneira como vemos o mundo, e como atuamos nele. A obra é um convite para conhecer o outro, suas realidades e combater o preconceito. Na mesma linha Paralelo 10, da jornalista Elisa Griswold, traz a tensão sectária entre o mundo cristão e islâmico na África subsaariana que demarca o limite não só entre as crenças, mas também a transição entre o deserto e a floresta tropical.
Pulando casas, peguei carona com Gloria Steinem, em Minha vida na estrada. “Quando as pessoas perguntam por que ainda tenho esperança e energia, eu respondo: porque leio e viajo”. Com esta resposta da escritora apresento este livro. E, completo: também vale a leitura para conhecer sua luta feminista.
Agora, se você estiver com faniquito para viajar a Portugal, não vá para lá sem ler antes Viagem a Portugal, de José Saramago. Sem dúvida, o autor foi aonde se vai sempre, mas foi também aonde se vai quase nunca. Saramago recolhe histórias, fala sobre a culinária portuguesa, sua cultura e tradições, museus e a arquitetura das igrejas.
Um livro só é bom quando ele abre novas portas para nossa imaginação. Você pode concordar ou discordar, mas sempre aprendemos algo com a literatura de viagem. Esse ano que passou, viajei todos os dias, poderia citar os caminhos que também percorri ao lado de Gabriel Garcia Marquez, em O escândalo do século, e como passei dias navegando pelo Atlântico, de Simon Winchester, este com um oceano de histórias.
Quero finalizar parte de minhas viagens em livros aqui com duas obras-primas. A primeira, sempre retorno para me divertir e entrar na fantasia de As Aventuras do Barão de Munchhauzen, de Rudolf Erich Raspe. O barão é famoso pela grandeza de suas mentiras. A outra obra-prima é dilacerante, mas indispensável para os dias de hoje: Eu, Ota, rio de Hiroshima, de Jean-Paul Alègre. Um livro para ler em uma hora, mas sentir a vida toda. Não vou dar spoiler. Leia e depois me conte o que achou.
Livros, como viagens, podem ser rito de passagem. Para mim foi. Ler e viajar. É neles que se encontra a chave para tudo
*Matéria publicada originalmente no blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão