Tivesse conhecido Gilberto Dimenstein assim me apresentaria: “Sou dela, da Ilha de Mosqueiro”. Tal qual ele, não nasci lá, mas pertenço àquela terra. Corrijo, mais água do que terra. Nessa mesma ponte e vibe teríamos cruzado nossas doces lembranças desse paraíso, como o escritor e jornalista definia Mosqueiro: a casa do avô que veio do Marrocos, a chegada do peixe de manhã cedo, os búfalos, o cheiro do jasmim e a tapioca.
A Ilha de Mosqueiro é rodeada por aquele aguão doce da baía do Guajará e da baía do Sol. Águas com especial cor de mosto de cerveja que toca as praias do Paraíso, do Chapéu Virado, e outras vinte mais.
Muito antes do avô Marcos, a ilha foi escolhida ao acaso pelos índios Tupinambá que fugiam da invasão dos estrangeiros no litoral do nordeste. E o costume deles de moquear, moka’e, o peixe, indicava a ilha do moqueio, que virou Mosqueiro. Será?
Curto muito saber a origem de nomes de lugares, e no Pará, mais do que em outros locais já encontrei de um tudo. Daí fico com a versão do escritor José Valente que afirmava o nome derivar de Ruy de Moschera. Esse navegador espanhol se perdeu no banzeiro de uma tempestade no mar e caiu na boca do Amazonas empurrado por fortes correntes. Artes da pororoca? Com a nau desconjuntada deu graças à sorte de ali chegar. E curtiu meses à toa, só em maré de rosas, na companhia dos índios que o ajudaram a consertar o barco, lhe ofereciam frutas silvestres como taperebá, maracujá, uxi, além da farinha d’água. Na despedida, Moschera com o coração na boca, levou sacas abarrotadas dessa farinha.
Quem também chegou por artes do destino foram os búfalos. Conta-se que um navio carregado deles se dirigia às Guianas quando naufragou. Devia ser um mês Bro. Melhor traduzir, um dos meses que terminam em bro, quando as águas engordadas pela lua fazem até grandes navios galoparem bonito. Os animais que conseguiram se salvar foram nadando até a praia. Lá encontraram tanto lago, lagoa, e poça d’água que até pensaram ter voltado da Índia, de onde partiram. Dóceis, num mansedume só, deitavam o couro nas águas para não rachar, e prestativos encaravam todo tipo de serviço. Hoje, do leite grosso da búfala faz-se o cremoso queijo marajoara. Papa fina!
A iguaria que encantava Gilberto era a tapioca: …“ela vinha em folhas de bananeira, docinha, bem docinha. Na boca era uma explosão… e nunca mais senti esse cheiro”. Faço coro, e quase parodiando Vinicius, que me perdoem as tapiocas de todos os outros cantos do Brasil, mas as do Pará são fundamentais. Mas, não são todas feitas só da goma da mandioca? Sim, mas as tapioqueiras do Mosqueiro, depois da decantação da mandioca ralada, deixam o polvilho levemente umedecido.
Talvez seja esse o segredo que garante aquela textura única, um puxa-puxa leve, além do aroma fresco e quase um pouquinho azedo próprio da raiz. Para os índios era tï pï og. As renomadas tapiocas da ilha do Mosqueiro têm espaço exclusivo, é a Tapiocaria da Praça Matriz. Nem tinha precisão de endereço, é só seguir o aroma que gruda no ar. Feitas na hora não carecem de recheio, ou só regadinhas com leite de coco fresco. Mas, se bater aquela fome, o recheio garante sustança e aí a criatividade das tapioqueiras não tem limites, tem de queijo, de cupuaçu, camarão, tucupi e até as veganas.
E tem as casas antigas de que se recordava Gilberto – chalés de Mosqueiro – assim chamadas as casas de veranear erguidas pelos ingleses que trabalhavam na Port of Pará e Amazon River. O estilo dos casarões seguia o gosto europeu e foram construídos em madeira com lambrequins e azulejos vindos de Portugal. A paz bucólica de Mosqueiro e o costume de passar férias na ilha atraíram também a elite paraense da época. Em sua maioria os chalés avarandados ficavam na orla da praia com a brisa boa do Guajará; pé direito alto para melhor ventilação elevados por pilotis para proteger da umidade própria da Amazônia; dotados de muitos quartos, porões, jardim e quintal com árvores frutíferas
Tivesse conhecido Gilberto Dimenstein diria que guardo a última crônica que ele escreveu para a Folha de São Paulo (27/12/2011) antes de migrar para a edição digital do jornal: “Minha palavra mais bonita” “… Serendipity é uma palavra impossível de ser traduzida num único termo. Superficialmente, ela significa o prazer das descobertas ao acaso. E, por trás da palavra, existe a ideia de que o melhor da vida é a aventura do aprender pela experiência. Não só assistimos ao jogo para descrevê-lo. Somos também jogadores”.
Bom Gilberto, fizemos parte do mesmo time da Ilha de Mosqueiro.