O endereço da escada é San Marco 4299, Veneza, se conseguir encontrar! Fica em um labirinto fechado de pórticos e vielas estreitas, rii e canali. Sem perguntar nada a ninguém, procure orientar-se com um GPS ao entrar e sair deste cipoal de corredores e praças, dispostos de tal forma que os pontos cardeais ficam anulados. Desista de giravoltear e de decifrar o mapa, principalmente em dias de acqua alta. Peça ajuda a um vêneto. No nosso caso foi o Sr. Vinicius Scarpa, que já estava numa idade que vai-não-vai, que deixou seu vinho acaba-não-acaba e a leitura do jornal no Caffé Florian, e se ofereceu para nos acompanhar.
Como um drone meus pensamentos sobrevoavam Veneza, a “Noiva do Adriático”, fundada no século 11 por mercadores ricos e que tem várias outras no mundo querendo ser seu clone, como Amsterdã, Bruges, Bangkok, Leningrado, Mopti, no Mali, Recife e até a simpática Jenipapo na Ilha de Marajó.
Veneza sedutora, romântica, libertina, de amores célebres, de conquistadores como Baffo e Giacomo Casanova; de Carlo Goldoni, com suas picantes histórias de elogios al culo; e de mulheres fatais e provocantes que segundo o poeta Gabrielle d’Annunzio escondiam uma cauda de sereia embaixo dos vestidos. Outros, como Byron, Goethe, Shelley e de Musset, declamavam a “Sereníssima” como primor de cabo a rabo e dedicaram palácios e poemas às suas amadas vênetas que com seus olhares femininos exprimem o enigma da sensualidade e do desejo.
Não é por acaso que essa cidade é a mais escolhida para casais luademelarem e até mesmo por aqueles que estão no quarto minguante. Todos dizem ‘I love you”, de Woody Allen. O líquido labirinto dos canais venezianos é uma potente metáfora de Eros.
De volta ao chão, enquanto caminhávamos por lugares despovoados e ótimos para desaparecer e onde não há necessidade de aparições rocambolescas para gelar o sangue, atrevi-me a falar com o senhor Scarpa para certificar-me se ainda continuava vivo. Foi nessa atmosfera que ele, com voz vacilante num rosto pergaminhado, conta a história “ufficiale” da famosa escada.
Pedro Contarini, dono de um palacete de quatro andares em frente a um dos raros jardins de Veneza, nas imediações da Piazza San Marco, manda construir pelo arquiteto Giovanni Candi, em 1499, uma escada para embelezar sua mansão. Esta elegante obra, em um estilo que está entre o renascimento, gótico e bizantino, é uma torre cilíndrica de tijolos e mármore branco, com paredes vazadas e uma série de arcos ascendentes. O resultado é o de uma arquitetura aérea, de flutuante leveza que mais parece o famoso punto in ária, dos merletos, bordados de Burano.
Na história “in verità”, o senhor Scarpa conta orgulhosamente que Pedro era um donnaiolo, um galinha, que como bom vêneto tinha-se enrolado num imbróglio sentimental. Sua mulher cansada das escapadelas diárias e noturnas de seu marido o proíbe de entrar em casa.
– Mas eu tenho meus próprios aposentos no quarto andar, diz Pedro.
– Tá legal, mas você está proibido de entrar pela minha casa para chegar a eles. Se vire! Respondeu a mulher.
– Me ne frego, desdenhou Pedro, e mandou construir então a escada, a scala bovolo, que no dialeto vêneto quer dizer caracol. E se virou!
Resumindo: Pitágoras é que estava certo quando há 3.000 anos escreveu, “somente a música e o tesão podem fazer conosco o que quiserem”. Até mesmo construir a escada mais bela de Veneza.
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