Não foi um jantar pantagruélico no Mère Brazier, de Lyon, um dos mais estrelados do Michelin, nem tampouco o bacalhau preparado por uma chef galega. Minha melhor lembrança gastronômica é de uma simples xícara de café. Não uma, mas muitas durante gostoso período da minha vida.
Trintrim, crokcrokcrok. Não necessariamente nesta ordem, mas estes eram os sons pavlovianos que me anunciavam a chegada de um delicioso e penetrante aroma. De início suave, para logo tornar-se denso e forte. Na minha imaginação de criança, deveria ter seis ou sete anos, aquele cheiro vinha como uma nuvem dos desenhos em quadrinhos: primeiro um fiapo que passava pelas frestas da porta, para em seguida transformar-se numa pesada e escura nuvem que caía sobre mim.
Meu despertar se dava ainda de madrugada, por meio destes dois sentidos que funcionavam também como se fossem uma benção para começar o dia com o pé direito, e lembrar que estava de férias em São Carlos. O trimtrim era a partida do bonde desconjuntado que tinha ponto em frente à casa da minha vó Pina, e o crokcrok, da máquina na qual ela moía os grãos de café recém-chegados da torrefação.
Chamado à vida, levantava não sei por que tão rápido e corria para a cozinha, mesmo quando lá fora não havia sinais de amanhecer. De costas, com seu corpão, estava a nonna preparando o primeiro café do dia. Ao seu lado Nenê, sua ajudante de ordens, capitaneava o fogo no imenso e grená forno a lenha. Nonna, embora já tivesse um fogão a gás, preparava muitas delícias no antigo, e o café era uma.
Como querendo fazer surpresa, dava-lhe então por trás um imenso abraço que não conseguia circunvolvê-la. Com um gesto delicado ela pousava suas mãos macias e livres de rugas e manchas em meu ombro nu e me puxava para ficarmos um ao lado do outro, bem juntinhos, enquanto preparava o café. Rendido diante daquela ternura, deixava-me envolver pelo silêncio, pela magia da luz chamejante laranja e amarela proveniente do forno; e também da névoa que se formava da fumaça espiralada que saía assobiando da chaleira.
Em uma cuba, a água amornada em banho-maria pelo fogão a lenha repousava aguardando a chegada do enorme bule esmaltado de azul. Em cima deste, um filtro de pano, com dois estágios de altura, para regular bem o escoamento sem deixar esfriar a água que naquele instante já era entornada.
Pina executava todos os movimentos com a aparência de um ritual antigo, secreto, necessário e esperado. Então, ela me fazia ter a honra do primeiro gole, e só aí falava – e allora, Ettore? Contagiado pela fragrância e depois pela bebida sedosa que vinha acompanhado do gosto de laranja ou de cereja, que já indicavam a boa qualidade dos grãos, respondia com ares de entendido – Buono nonna, buono. Então, ela sorria e, ainda abraçados, se curvava e me enchia de beijos.
Muito mais tarde viria a deduzir que a carência de palavras naquela hora em que ela preparava o café significava algo, muito maior, que talvez fosse à síntese de sua existência. Nonna, imigrante do Veneto, se casara com outro vindo de Cremona. Com muito lavoro, compraram uma fazenda de café. Lá, criaram seus doze filhos.
Mas um dia não veio o crokcrok, e sim o crak da bolsa americana, e aí, perderam tudo. Quando Ettore nipote chegou, Ettore nonno se foi. Talvez ela revivesse, naqueles instantes do primeiro café do dia, um momento feliz de sua vida, e assim recordava o amado.
Naquela casa que sabia guardar lembranças, passei momentos de extrema alegria, sempre acompanhado do primeiro gole do melhor café do mundo. Mas quanto menos se espera, o mundo fica real. E, em uma dessas horas, inquietou-me não ouvir mais o trimtrim nem o crokcrok ao amanhecer. Levantei rápido, Nenê estava pondo a mesa. O forno a lenha desaparecera. Nonna de costas preparava o café num enorme fogão branco a gás. O coador de pano suspenso agora sobre a garrafa térmica. Por trás, enlacei nonna com um enorme e apertado abraço. E novamente provei o primeiro gole daquele café.
– E allora, Ettore?
– Buono, carina. Me curvei e a enchi de beijos.
*REMEMORAÇÕES – Em São Carlos, minha melhor lembrança gastronômica