Se para os franceses a cozinha é religião, seu templo fica em Dijon, na Borgonha, apenas duas horas de trem de Paris. Alguns dos produtos dali, como a mostarda, o pain d`épices e o licor de cassis, são emblemáticos e têm renome mundial. Conta-se que há 200 anos, na Praça Rude, centro medieval da cidade, a fonte do Vindimador, ao invés de água, jorrava vinho.
Escolhemos o caminho mais longo para chegar a Dijon percorrendo prazerosas estradas vicinais até aos contrafortes das montanhas de Morvan. Mas é a partir de Paray-le-Monial, quando acompanhamos o Canal du Centre e suas eclusas, ladeado por aromáticos ciprestes, que a história foi outra. Não por menos essa estrada é patrimônio nacional.
A estrada passa por vilas medievais pontilhadas de abadias, palácios e castelos que dão a marca de nobreza à paisagem dominada por vinhedos. São cinco as regiões produtoras de vinhos na Borgonha: Côte de Nuits, Côte de Beaune, Côte Chalonnaise, Chablis e Mâconnais, cada qual com sua particularidade. E, o saboroso legado de mais de mil anos pode ser degustado em quase 300 vinícolas abertas à visitação. Um cruzeiro de pedra no caminho indica os vinhedos de pinot noir da prestigiosa Domaine de la Romanée-Conti, considerado um dos vinhos mais sofisticados da França. Mas Borgonha não é só vinho.
Chegar em Dijon sem apetite seria o mesmo que cometer um sacrilégio! Então fomos de barriga vazia arruar pelas ruas, e demos destaque para as que ficam ao redor do mercado Les Halles – uma construção metálica do final do século 19. Ali se localizam os simpáticos e pequenos bistrôs, creperies e as chocolateries, com chocolates artesanais de Bernard Dufoux, produzidos em La Clayette, e há vinte anos considerados o melhor do país.
Uma vez dentro do mercado, conferimos o quanto os alimentos enfeitiçam os franceses. Só de queijos são 600 tipos. À déguster impérativement o citeaux, queijo produzido na abadia dos padres cistercienses, e o époisses, queijo redondo com crosta vermelha, típico de Dijon. Frutas frescas da estação, cogumelos, salsichas, salames, escargots, ufa! Só para citar apenas alguns produtos. Havia fila de espera em algumas bancas como na que vende a prestigiada carne bovina charolais e a do frango de Bresce, espécie criada apenas nessa região.
Até mesmo fora do mercado, continuamos a peregrinação gastronômica. Vitrines de lojas só de tortas ou de especiarias, bistrôs que servem um chablis Domaine Droin, ou um Clos de Tart, além dos coloridos macarons recém-saídos do forno oferecidos pelo pâtissier que subverteu a continuidade do passeio.
A riqueza da cidade surgiu no século 14 com a mostarda. Na receita básica, os grãos de dois tipos de sementes, a branca (Brassica hirta) e a negra (Brassica nigra) são maceradas e misturadas ao vinho ou vinagre, água, sal, ácido cítrico e ervas. A receita elaborada com vinhos da região de Borgonha e com as melhores sementes foi regulamentada pelo rei Carlos VI e, a partir daí a região se consagrou pela qualidade.
Aqui vale uma historinha com a intenção de provocar os franceses: dizem as ‘boas línguas’ que foram os romanos que levaram a mostarda para a Borgonha. O nome deriva do latim mustum ardens, ou seja, mosto ardente, e já era conhecido desde a época que o exército romano utilizava as estradas que passavam por Dijon para a conquista da Gália. Os franceses tiram de letra essa controvérsia, afirmando que a única mostarda com Denominação de Origem Controlada é a produzida na cidade. E, a preferida entre os chefs de todo o mundo é a fina e aromática Malle.
Outro produto emblemático de Dijon é o pain d`épices. Para este não existe discordância, é francês mais do que quatrocentão. Desde 1600 sua receita é guardada a sete chaves. É Catherine Dugourd quem dirige a mais prestigiada pâtisserie da cidade, Mulot & Petitjean, fundada em 1796. Depois que fizemos sinceros elogios a iguaria, ela nos revelou o segredo: “a base é uma massa de pão, mel e açúcar que deve repousar de três dias a três semanas e só depois é misturada com ovos e anis”.
O licor de Cassis é mais uma marca registrada da cidade. Criado em 1840 por Auguste Lagoute, a partir da maceração da fruta num álcool neutro e, posteriormente edulcorado com açúcar cristalizado. E, bingo, não tardou muito para que o recém-criado licor se tornasse ingrediente de novas receitas, inclusive a que leva mostarda. Esqueça nosso básico cassis com papaia. Lá ele é tanto digestivo (liscio), como aperitivo: colocando uma medida de cassis em taça de vinho branco (kir), ou de champagne (kir royale).
Por fim, nossa sugestão: nem pense em se apressar em Dijon. Passeie livre, sem roteiro nem endereços, e deixe que aconteça o improviso, a descoberta. Isso vale para as outras peculiaridades dali, como por exemplo a arquitetura à colombage – casas construídas com vigas de madeira de cor escura com rico grafismo. Repare também nos telhados policromos das construções do centro histórico.
Viajar não é isto? Passear, comer e tomar um bom vinho numa felicidade de dar gosto? Simples assim. Voilá Dijon.
Agenda de Viagem
Grand Hotel Dijon La Clouche, www.hotel-lacloche.com
Restaurant Hotel du Nord, www.hotel-nord.fr
Restaurant Hostellerie du Chapeau Rouge, www.chapeau-rouge.fr
Lojas de iguarias regionais: Mulot & Petitjean, mulotpetitjean@mulotpetitjean.fr
Bourgogne Street, www.bourgognestreet.fr
Maison Milliere, www.maison-milliere.com
La Moutarderie Falot, www.fallot.com
Charcuterie Degrace, Halles, tel. 03 80713953
Para saber mais: www.dijon-tourism.com
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão