Prato mais simples nesse mundo não havia. Era só apanhar o fruto da cuieira, separar em duas bandas, e estava pronto o prato! O mais fundo era perfeito para o mingau dos curumins, já os largos acomodavam bem os beijus. Mas, ahh! E o capricho das índias ia deixar a ‘baixela’ nessa simpleza desenfeitada? Qual o quê! As indígenas recobriam as cuias com um sem fim de traços em espirais, semicírculos, labirintos, e padrões retirados da natureza.
Viajo ao Pará a fim de saber mais sobre as cuias das índias da região de Santarém, e que hoje continuam sendo feitas pelas artesãs dali. No movimentado porto da cidade, sigo numa espécie de barco-circular que vai parando em diversas comunidades banhadas pelo Rio Tapajós.
O sol já vai se pondo quando chego em Aritapera, onde Cecília minha anfitriã me aguarda diante de sua casa palafita. A artesã me apresenta o lugar: “no período chuvoso quando as águas do rio sobem, até para ir na vizinha preciso usar o barco, em compensação dá de pescar da janela”. O jirau onde ela e suas amigas se reúnem para pintar as cuias também é apoiado em pilotis, assim como a pequena horta de tempêros e o galinheiro.
No cadenciado falar caboclo, as artesãs vão me contando sobre as cuias: “Elas servem “para um tudo”: tirar água dos barcos, tomar banho no rio, cozinhar, armazenar água, e ainda de copo ou prato, como no caso do tacacá, iguaria feita da goma de mandioca, tucupi, camarão e folhas de jambu.
“O mais bacana é que a árvore da cuieira produz frutos de formatos diversos que batizamos com nomes de: peixe-boi, a maior delas e ideal para fruteiras; maracá, utilizada para copos ou vasos; comprida que dá boas travessas; e da pequena cutita, são feitos copinhos”, conclui a artesã Marta.
O falatório recai agora sobre a elaboração das cuias “feitas do mesmo jeitinho que as índias faziam: serramos ao meio os frutos, retiramos o miolo, com escamas de pirarucu lixamos as peças, e os desenhos são riscados a faca ou canivete”. Fico sabendo também que da casca do axuazeiro é feito o cumatê, um corante natural. Este grupo de artesãs de Aritapera só trabalha com motivos florais influenciados pela louça de faiança trazida pelos colonizadores europeus.
De Aritapera sigo agora a bordo de pequeno barco em direção ao vilarejo de Cabeça d’Onça. Nos caminhos aquáticos sou surpreendida vez ou outra pelos saltos de botos cor-de-rosa, ou do cinza tucuxi. Ali vou me reunir com as artesãs das distantes comunidades de Surubim-Acú e Carapanatuba que decoram as cuias com grafismos indígenas, e mais a criatividade de cada uma.
Em Cabeça d’Onça, mulheres alegres e de todas as idades que enfrentaram mais de cinco horas de viagem de barco estão me esperando na varandona da casa da artesã Maria Durvalina. Elas me revelam que o ofício reúne quase 200 famílias, é muito importante para a contribuição de renda, que repassam o saber para as mais jovens, e enviam as cuias para serem vendidas no Mercado de Santarém e nas lojas de artesanato de Belém.
O modo de fazer cuias foi reconhecido pelo IPHAN como Patrimônio Cultural do Brasil, e as artesãs preocupadas com a preservação replantam constantemente a cuieira.
De volta a Aritapera, mergulho minha cuia naquela água cor de mel cristalizado, e de temperatura reconfortante. No banho refresco corpo e alma. Chega meu onibus-barco, me despeço das artesãs e sigo viagem. Agora, de mala e cuia!
Contato da Asarisan, a Associação das Artesãs de Santarém: artesanatoribeirinho@yahoo.com.br
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão