Câmera e Talento para o Cinema Argentino

Sair à rua, filmar o real e mostrar seus personagens que sobrevivem numa corda bamba, são a base da nova cinematografia argentina: ela surpreende, encanta e faz da simplicidade seu toque de mestre

Sim, o cinema mantém a vitalidade. Desde 28 de setembro de 1895, universalmente aceito como o dia em que se inventou o cinema, o mundo artístico nunca mais foi o mesmo. Naquela data ocorreu a primeira sessão do ‘cinematógrafo’ criado pelos irmãos Louis e Pierre Lumiére, no El Éden, em La Ciotat, um pequeno balneário ao lado de Marselha, França. A projeção do filme que mostrava um trem entrando na Gare dessa cidade assustou, tumultuando todos os espectadores naquela sala, que por sinal ainda existe. Desde então, criativos cineastas despertam nossa surpresa e nosso entusiasmo.

Depois de começar imitando o teatro, o cinema não tardou a elaborar uma linguagem e estética próprias, e passou a explorar novos meios de contar eficazmente uma história, quase sempre extraída da rica herança da literatura. Mas isto não significava que não havia diretores que já propunham um cinema de vanguarda. Tais desafios sempre aconteceram. Logo surgiram os surrealistas na França, os expressionistas na Alemanha e os virtuosos russos da montagem que se esforçavam, cada um à sua maneira, para sair do lugar comum. Assim, Un Chien Andalou, de Luis Buñel, O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, e Couraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein, figuram entre os clássicos do cinema mundial.

A popularidade e a magia do cinema foram mais frequentemente utilizadas como meios de entretenimento, mas o primeiro grande avanço cultural se deu após a Segunda Guerra Mundial. Uma nova geração de cineastas se armou para expressar os sentimentos de seus contemporâneos. A busca de uma nova imagem humanitária, em um mundo de valores dilacerados, ficou evidente nos filmes: Ladrão de Bicicletas, de Vittorio De Sica; Roma Cidade Aberta, de Roberto Rossellini; Rashomon, de Akira Kurosawa e Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda.
Uma reviravolta iria se produzir nos anos 60 sem que, no entanto, o cinema renunciasse à sua vocação popular. Os filmes da nouvelle vague francesa – sobretudo os de François Truffaut, de Claude Chabrol e Jean-Luc Godard -, e as películas A Aventura, de Michelangelo Antonioni, Oito e Meio, de Fellini, Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, e Quando duas Mulheres Pecam, de Ingmar Bergman, são obras que marcaram o advento de uma sensibilidade nova, provando que o cinema já era aceito como arte.

E por que agora essa onda com o cinema argentino? Porque algo está mudando na geografia cinematográfica contemporânea. O melhor cinema jovem hoje é o da Argentina – Juan José Campanella, Pablo Trapero, Lucrecia Martel, Marcelo Piñeyro, Damián Szifrón, dentre tantos outros – eles que o digam. Em busca da simplicidade e do dia a dia, sem efeitos especiais, eles alcançaram um olhar diferente sobre o cotidiano. Em estilo próximo, às vezes, do documentário, conseguem compor uma imagem dramática do absurdo da existência. Um cinema que se faz a partir da liberdade de tom, o que o levou a romper as convenções estéticas e narrativas do cinema clássico. E Buenos Aires é, em primeiro lugar, a cidade de onde vem o cinema argentino, compondo uma tradição rica e contínua de glamour e arte.

O ímpeto renovador do cinema argentino não é recente. Foi durante mais de uma década, entre os anos 1936 e 1946, o cinema mais popular nos países de língua espanhola. “Fora desse âmbito, o cinema argentino é conhecido a partir de 50, com os filmes de Leopoldo Torre Nilsson, rodados no exterior, e nos enredos políticos de Fernando Solanas, nos idos de 70 ”, cita Inácio Araujo, crítico de cinema da Folha de São Paulo.
Araujo acrescenta que essa nova onda argentina tem sim uma proximidade com o cinema francês e italiano do início da década de 60, pois como tal, seus diretores também querem mostrar o que está do lado de fora. “Fazer um filme para que o povo se veja nele”. É na presença do cotidiano, na empatia com os personagens, no estilo austero da narração e nos parcos recursos tecnológicos que está a grandeza desse novo cinema. Tudo alimentado pela riqueza literária daquele país. São filmes que expressam a Argentina, mas poderiam ser também de outros países. Veja o caso dos que focalizam a feroz ditadura argentina na década de 70. Para Araujo, “eles falam de uma questão de justiça, e não de vingança. E com isso fica um cinema verdadeiro”. Não por menos, o primeiro grande reconhecimento desta nova onda surgiu com A História Oficial, de Luis Puenzo, Oscar de melhor filme estrangeiro de 1986. Para Araujo, um novo neorrealismo está surgindo, e cita Pizza, Birra, Faso, de Israel Adrián Caetano, Mundo Grua, de Pablo Trapero, e La Niña Santa, de Lucrecia Martel, como precursores desse movimento renovador.

“Encanta-me cada vez mais o modo como os cineastas argentinos incorporam nos seus filmes a tradição literária e a vocação teatral”. São palavras do professor universitário de audiovisual e cineasta Fermin Rivera, diretor do documentário Huellas y Memória, sobre a vida do maior documentarista argentino Jorge Prelorán (1933-2009). Rivera cita o teatro na Argentina como a grande catapulta que projeta autores e atores no cenário da filmografia. “Veja o filme O Homem ao Lado, de Mariano Cohn & Gastón Duprat, outro marco recente do nosso cinema, no qual se pode antever uma dramaturgia teatral, aliada à característica principal dos filmes argentinos – o elemento surpresa.”

Rivera, que trafega entre documentários, pressente que o próximo mapa da mina do cine argentino desfilará pelo cinema documental. “Já temos uma linguagem que nos trás a Argentina, não em seu pitoresco, e sim no registro verdadeiro e realista, contudo sem excluir um olhar poético”, e tasca: “você sabia que 40% do cinema que se faz hoje no mundo são documentários?”

O século 21 se acena auspicioso para o cine argentino. Seus filmes vêm acumulando elogios e prêmios nos festivais mais prestigiados, e até um novo Oscar de melhor filme estrangeiro foi conquistado em 2010 com O Segredo de Seus Olhos, de Juan José Campanella. Na esteira, os críticos apresentam uma lista de filmes emblemáticos como Un Conto Chino, de Sebastián Borensztein; Tempo de Valentes, de Damián Szifrón; Carancho, de Pablo Trapero; e os recente Medianeiras de Gustavo Taretto; e Las Viudas del Jueves, de Marcelo Piñeyro.

“Mas, sem dúvida, foi Nove Rainhas, de Fabián Bielinsky que, em 2000, abriu as portas para além da Argentina e seu novo e perturbador cinema”, assegura Marcelo Magnasco, diretor da Faculdade de Audiovisuais, do Instituto Universitário Nacional de las Artes, em Buenos Aires. Magnasco, que dirige a mais antiga das 20 escolas de cinema na capital, tem consciência de que existe uma escola argentina de cine. Não há fórmula específica, mas um estilo particular, em que cada diretor procura construir a própria identidade, mas com foco refletido na pluralidade do seu país.  E reforça, dizendo que “Campanella e Martel, por exemplo, são cinemas bem diferentes, mas ambos têm um movimento cultural que beira o antropológico”. Cita o filme Abraços Partidos, de Daniel Burman, que bem poderia representar não só a nova cinematografia argentina, como o próprio povo argentino. “Os espectadores se identificam com o garoto que vai pedir à avó os documentos para conseguir um passaporte e morar na Polônia. Ela responde: ‘tudo bem, mas não me pergunte nada sobre a Polônia’. Esta resposta somos nós. De repente uma saída para o futuro sem saber do passado”, esclarece Magnasco.

Para ele, o amadurecimento do cinema argentino se deve ao prazer dos diretores em se reinventar. Um processo de criação que passa pelo fascínio da imagem que atrai o espectador, mas é a prosa rápida e ativa que incentiva um longa-metragem. É esta a linguagem da maior parte do enredo dos filmes, que nada mais são do que as tramas e os sentimentos da vida. “Principalmente os nossos”, ressalta Magnasco. “Passamos por todo o tipo de crise e podemos ter um cine que retrata uma irrealidade, mas neste país a realidade do dia seguinte pode ser qualquer coisa”, ele ironiza.

Por fim, a grande certeza é a de que o cinema da Argentina consegue se mover com desenvoltura – desde as pequenas situações aos grandes temas – em meio à incerteza. Esta, a verdadeira expressão da alma de seus habitantes, pois como disse o famoso cartunista argentino Quino: será que amanhã teremos um dia normal?

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Prensa Ente Turismo de la Ciudad de Buenos Aires