Viagens e livros são a mesma coisa para mim.
Estão lindamente integrados. Embarco em viagens ou em mares de livros, com o mesmo prazer que golfinhos rodopiam sobre as águas. Aprendi, porém, que livrarias e viagens não são inofensivas, mas aventuras capazes de provocar surtos. Florença fez o escritor Stendhal – e muitos viajantes – pirar diante de tanta beleza, e eu corro sérios riscos, pois perigosamente, volta e meia, misturo livros e viagens.
Alguns exemplos? Já fui ao encalço da BTU em Cottbus, Alemanha, livraria de arquitetura fluida e uma escada cujas cores verde e lilás intensificam sua forma espiral. Para ver a Altair, nome da estrela dos viajantes, viajei até Barcelona. Já em Paris, na inquietante Voyageurs du Monde, soube que a Lello, livraria do Porto, Portugal, inspirou a escritora J.K.Rowling a criar a “Floreios e Borrões”, livraria onde Harry Potter buscava antigos volumes de magia.
Pode até ser pegada de marketing, mas me pegou
Numa manhã de outono, contemplava a formosura do Rio Douro onde pairava uma névoa trespassada pelos raios de sol.
Nas margens as silhuetas dos que madrugam para correr ou pedalar dissipavam-se na bruma qual fantasmas. Quase versão do fog londrino da saga do bruxinho aprendiz.
Pergunto a um passante a direção da Rua das Carmelitas, endereço da Lello. E, num saboroso sotaque lusitano disse-me que deveria subir, subir sempre e completou:
“ladeiras que a subir nem os anjos ajudam e a descer até os diabos empurram”
Nas ruas silenciosas e desertas, o pléc, pléc, pléc marcava meus passos nas calçadas de pedra portuguesa.
Quando cheguei ao meu destino, com a livraria ainda fechada, pude ler no guia:
“As figuras femininas da fachada representam a Arte e a Ciência; fundada pelos irmãos Lello, com projeto do engenheiro Francisco Xavier Esteves, um apaixonado por literatura, pelo estilo Art Nouveau, e gosto pela fantasia vertiginosa da espiral”.
O guia completava que Joanne (o jota do J.K. Rowling), casada com um jornalista português, viveu de 1991 a 93 na cidade onde dava aulas de inglês. Mas, só? Terá frequentado a Lello? , quanto a se inspirar na Lello? Nenhuma palavra.
Abracadabra, abre-se enfim a porta da livraria. E me pergunto: que portas abrirão para mim que arquiteto imaginações?
De imediato vejo que é pequena. Então porque acho que entrei num castelo? Bem no centro da livraria, pulsa o coração da escada. Serpenteante, maga, misteriosa. Camaleônica.
Sua forma extraordinária dá asas à imaginação e num piscar de olhos me fez acreditar que estava no bojo de antigo galeão, ou sob a bundona de gigantesca aranha. Minha vontade é logo subir pelos primeiros 13 degraus encarnados, mas recuo ao imaginar uma língua de fogo. Contorno a escada e vejo com clareza as asas abertas de um dragão.
Apoiada em apenas três pontos, a escada parece flutuar no espaço. Insinua uma ponte, e também um barco.
Suportes para lâmpadas aludem ao cajado de São Nicolau, e o grafismo dos entalhes sugere a armadura de guerreiro oriental. E ainda tem ornamentos, mandalas, desenhos ou caligrafias de antigas escrituras. E mais, colunas, o vitral, e um carrinho sobre trilhos que atravessa a livraria para transportar pralapracá os volumes mais pesados.
O andar de cima é um capítulo à parte: imagino uma lagarta cor de groselha, ou centopeia se arrastando naquele corpão movediço. Não, eu não estava na Floreio e Borrões, mas dentro do pensamento engenhoso e inventivo da escritora.
Rowling enxergou o misterioso movimento que ali existe. Há mais de vinte anos poucas pessoas entravam na Lello, e na quietude ela podia fantasiar à vontade sobre a fábula que apenas se esboçava. Na Escola de Magia de Hogwarts ela acrescentou à escada uns efeitos especiais e a advertência do professor: “atenção nas escadas, elas gostam de mudar”.
Já eu pergunto: quantas leituras permitem uma livraria?
Muito do que Rowling viu no Porto transformou em linguagem. E o que ouviu também! Como o poema de António Gedeão cujo título é ‘Pedra Filosofal’, musicado por Manuel Freire. Uma das estrofes diz: “…eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida”.
Te conto que agora vai ficar melhor ainda. O nome do fundador de uma das quatro casas de Hogwarts é Salazar Slyterin. Sedento de poder e astuto, seu nome veio do ditador português, e a capa negra do uniforme dos alunos de Hogwarts é a mesminha do traje acadêmico da Universidade do Porto.
Mesmo longe, Rowling permaneceu conectada à cidade do Porto
A uma quadra da Lello, a Torre dos Clérigos, a Fonte dos Leões da Praça Gomes Teixeira, e as centenárias lojas com prateleiras de sardinhas em lata de alto a baixo, não passaram despercebidas por Rowling.
Leões foram parar no símbolo da Casa de Grifinória, a torre entrou no castelo da história, e a atmosfera da loja entulhada de pequenas caixas de varinhas-de-condão, são como ‘vinho da mesma pipa’ das casas de sardinhas.
Mas, a pista da molecagem maior da escritora é a Escovaria de Belomonte. A mais antiga loja de vassouras da cidade do Porto vende escovas de limpeza para ternos, vassouras para limpar chaminés e pincéis de barba. São produtos feitos a mão e confeccionados de pelo de cavalo ou de marta, e cerdas de porco ou texugo. Ali também se encontra ‘o coiso’ uma escova redonda inventada para muitos fins, só não a Nimbus 2001, vassoura para bruxos mais rápida que existe.
Porto anda bem mais depressa do que muitas cidades do mundo ainda atrás de fórmulas mágicas para atrair turistas. O que encanta os viajantes é uma cidade que se moderniza sem perder as autênticas e belas tradições.
E eu agora? Poderei também magicar pelo Porto? Então saio ao sabor e a graça espreitando a esmo e a farejar os ares, pois como cá dizem,
“Melhor do que passear é passear e comer”
A cada passo pela zona da Baixa me acompanha um aroma. Pode ser de cominho fresco, o creme tostado dos pastéis de nata, ou dos frutos secos. O cheiro mais pungente é do bacalhau espalmado, das enguias em conserva, dos embutidos e fumeiras com suas apetitosas nuances de cebola roxa.
Na tarde solarenga cheguei à Rua das Flores e me farto na Nata Lisboa com doces que se originaram nos conventos, ricos em açúcar e gemas, alguns com até 18 delas. Peço para levar uma queijadinha crocante para fomes futuras e sou avisada das gaivotas que espreitam para surrupiar petiscos dos viajantes.
Ainda na Rua das Flores, descubro uma loja só de tábuas para cozinha com madeira de Pernes, região de Santarém. Era acanhada, mas ficou cheia de si quando o chef Jamie Olivier, de férias na cidade, comprou dezenas delas. Os proprietários aproveitaram essa jogada e criaram na Loja das Tábuas “A Tabuada do Chef”, série prá lá de especial.
Quase ao lado fica a Oliva & Co que vende azeites de oliva, peça fundamental na cozinha portuguesa, doces de azeite, chocolates com azeite, e azeitonas carnudas vindas da região de Trás-os-Montes até Ribatejo.
Sob sol outonal, agora, refaço o caminho inverso do dia e chego ao Douro. Sol que doura os tradicionais barcos Rabelo que transportavam as pipas de vinho do Porto. Algumas variedades de uvas como a tinto cão são conhecidas como ‘pinta lábios, se cai na roupa não há nada que uma tesoura não resolva’.
Sento-me numa pedra do Cais da Ribeira e uma vez mais se confirma que viagens e livros têm ligações estreitas. Acredito que a centelha mágica da viagem é nos transportar em segundos, como agora que em pensamento, estou de volta diante da Lello na fila com quem veio do lado de lá do Atlântico, das vizinhas Alemanha, Itália, Espanha, Irlanda, Hungria …
O que nos moveu a todos? Uma história, uma livraria.
Saiba mais:
Turismo ou Convenções e Eventos no Porto e Norte de Portugal.
Lello livraria
*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens Plásticas do Viagem Estadão