A visão aérea da Ponte da Arrábida semi-encoberta por névoa dourada já era suficiente para justificar a viagem. Mas a razão principal de ter escolhido Porto, Portugal, para um stopover de 48 horas, foi a frase de José Saramago sobre outro escritor português: “Almeida Garret, mestre dos viajantes”. E, eu encasquetei em conhecer a cidade onde Garret nasceu. Simples assim.
Antes de tudo, apresentações: não curto horários fixos (os assinalados servem apenas como sugestão), nada de guias turísticos e fujo das indicações imperdíveis. A viagem para mim segue conforme a inspiração, a curiosidade sobre o que li, o que me interessou, ou mesmo considerar algumas dicas dos próprios portuenses. E aí faço meu roteiro-jogo. Um desafio entre o lugar e o viajante. Dei o primeiro lance.
8h00 – Acordar no Vila Galé Porto Ribeira
Nada como acordar com uma vista que revela a natureza do Porto sob a luz ainda tímida que começa a dourar o rio Douro. Situado em pleno Cais das Pedras, esse hotel butique tirando partido de quatro casas de pescadores já existentes, construiu um espaço elegante de linhas sóbrias e puras mantendo as fachadas das antigas residências, mostrando assim todo o conceito de sua arquitetura.
Os quartos podem ter como patrono dos sonhos um Van Gogh, um Rembrandt, um Miró (o meu). Todos têm como tema a pintura e seus mestres. “Boa cama, boa mesa”, diz o ditado e foi o que comprovei no diversificado e saboroso café da manhã que para um prazer maior ainda tomei numa das mesinhas em frente ao hotel apreciando a movimentação dos barcos.
9h30 – Harry Potter na Livraria Lello
Construída há mais de cem anos, essa livraria em estilo gótico português é considerada das mais belas do mundo e permite um clima fantasioso. De suas particularidades a mais procurada é a escada que sob qualquer ângulo tem um efeito visual perturbador. Não por menos a imaginação da escritora J. K. Rowling, assídua frequentadora desse local, quando morou no Porto por dois anos, foi mais longe. A escada, um triunfo do art nouveau, movimento que dá ênfase a fantasia vertiginosa das espirais, a levou a criar a escada que se move na Escola de Magia de Hogwarts.
Atenção: a livraria abre às 9h30. Procure chegar antes, comprar o ingresso (cinco euros a ser descontado na compra de um livro), pois a fila que se forma para entrar é tão grande que parece dia de Black Friday.
10h40 – A Pérola do Bolhão – uma mercearia (muito) particular
Agora saí à procura das lojas e lojinhas do centro histórico. Este é meu roteiro preferido, destino para andarilhos atrás de um pequeno extrato da riqueza local. Itinerário daqueles que gostam de curtir e observar pessoas, o que elas compram, de se surpreender com uma boa conversa por cenários atrativos e tão diversas vitrines.
Continuando meu desafio com a cidade, ela deu uma cartada de mestre – A mercearia ‘A Pérola do Bolhão’. Uma bolha de bom gosto para gourmands. Fundada há mais de cem anos, com bela fachada de azulejos que reproduz duas figuras orientais, seria hoje apenas mais um museuzinho não fossem os clientes que pela qualidade dos produtos e atendimento ali retornam diariamente. Embutidos artesanais, bacalhau, vinho do porto, queijos e a excelente orelheira fumada, atraem compradores até de outros países europeus.
11h30 – Manteigaria e Delta Q – dois clássicos da cidade
Por quem os sinos dobram no Porto? Ah! Que bela surpresa. Com esse toque a cidade já passou à frente no nosso desafio. Ali eles tocam anunciando que uma nova fornada de pastel de nata acaba de sair com três tons: moreno, claro e tostado. Uma marca de tradição de Portugal, a Manteigaria (doces), se uniu a contemporânea Delta Q (café) num único espaço, quase ao lado do Mercado do Bolhão. Percebi que ali o pastel difere do de Belém no recheio, um pouco mais cremoso e cá no Porto não se polvilha canela. Um lugar que curti e aproveitei para minhas primeiras anotações sobre esse roteiro.
12h40 – Presentear-se com sabonetes e perfumes na Claus
Loja consagrada do Porto, desde 1887, é dedicada à perfumaria de luxo e fica no coração da rua das Flores. Um local para se descobrir sabonetes, aromatizadores de ambiente e perfumes a base de sândalo, bergamota, alfazema, cravo, jasmim, além de fragrâncias raras. O mostruário com design moderno sugere mais uma loja de doces ou chocolates, mas a gama dos aromas é atrativa, e foi impossível não sair de lá sem uma loção de barba e sabonetes.
13h30 – Na Cervejaria Brasão para comer uma francesinha
“Você não pode sair do Porto sem comer uma francesinha”, é o que todos dizem. Esse sanduiche, original dessa cidade, pode ter duas origens, uma com pitada erótica, e outra que acredito ser a verdadeira de uma adaptação do croque-monsieur francês. Este mais próximo do nosso misto-quente, perde feio para a francesinha portuense. Uma verdadeira bomba energética de 1.200 calorias. Duas fatias de pão intercaladas com linguiça, bife, salsicha, fiambre, gratinadas com queijo e de lambuja um ovo estalado no topo. No capricho. Há variações com frango, salame e outros embutidos. O preço médio cobrado para uma francesinha é de 6,5 euros, e ela vale cada centavo.
Para finalizar pedi o doce da região, “Pudim do Abade de Priscos”. Não vou dizer o que é, também porque não sei explicar. Sei que é aveludado e ex-libris da doçaria portuguesa. Vai lá conferir. A sugestão é acompanhar esse doce com uma cerveja amarga Ipa, artesanal.
15h15 – Mergulhar no universo do Cais e da Praça da Ribeira
Nesta caminhada tinha o Douro de um lado e do outro a arquitetura que remonta a época medieval (a Praça) e as construções que ainda são as principais imagens do Porto (a maioria do século 17, 18 e 19). Tinha à frente a monumental ponte metálica Luís I, e o movimento se concentrava no entra e sai das pessoas que se entrecruzam nas tabernas instaladas nas reentrâncias da muralha. Mas foi um baixo-relevo em bronze do escultor Teixeira Lopes que me chamou mais a atenção. Ele retrata o sentimento da pureza do portuense – “Alminhas da Ponte”. Uma homenagem aos que morreram durante a invasão do Porto pelas tropas francesas a mando de Napoleão.
Com o sol na cara e a alegria escancarada paro às vezes para ouvir um artista de rua tocando algum instrumento, ora para xeretar os antigos barcos rabelos, aqueles que ziguezagueavam pelo rio transportando toneis do vinho do porto. Hoje ancorados não singram mais o Douro e mereciam dias melhores. E por falar do vinho do porto, do outro lado do rio em Vila Nova de Gaia estão as caves desse vinho, ou seja, o vinho do Porto não é do Porto. Mas, deixa pra lá.
17h20 – Uma pausa deliciosa na Rota do Chá
Outro lance de sorte no nosso jogo de desafios (lembra ainda dele?) foi um lanche nesse espaço, na rua Miguel Bombarda, onde as casas parecem suspensas no tempo e redescobrem-se galerias de arte que valem uma visita.
Nada de ostentação na Rota do Chá, lugar com décor bem indiano na entrada, mas que no jardim interno tem pegada marroquina. Ali são servidas mais de 300 variedades de chá provenientes das melhores regiões produtoras do mundo. No quintal arborizado há uma loja com objetos orientais, no piso superior um buffet para almoço e no fim-de-semana (sexta e sábado) os jantares são temáticos.
20h30 – Descobrir a gastronomia da Casa da Guripa
Aqui joguei para vencer e avancei várias casas no meu duelo com a cidade. Na minha jornada pelo Porto passei por vários restaurantes estrelados, mas buscava um quê diferente, fora dos roteiros turísticos, algo que combinasse mais com os portuenses. Tive que me render e pedir sugestão a Alexandra Freitas, da Visit Porto & the North.
Caramba! E que dica boa veio. Casa da Guripa, na praia de Angeiras, em Matosinhos, uns 30 minutos do centro da cidade. Deliciosamente plantada à beira-mar, entre coloridas casinhas de pescadores, sargaços e maresia, esse restaurante foi um achado que premiou meu primeiro dia. Aqui não se come simples peixes e frutos do mar.
Sob o comando dos proprietários, Manoela, ela filha do mar e do marido, filho de pescadores, ali a filosofia gastronômica preconiza o consumo de ingredientes sãos do mar ou da terra, mas trazem em si um tempero raro, caldo de cultura. A sugestão da casa foi um presente para meu estômago. Da família dos moluscos veio um lingueirão à bulhão pato no vinho branco com coentros. E para acompanhar, outra boa surpresa: sangria de frutas vermelhas com vinho verde espumante.
10h – Estação São Bento
No segundo dia, pois o tempo voa e eu também voaria no começo da noite, e sendo impossível conhecer essa cidade em tão pouco tempo, tive a companhia do motorista sr. Sergio. Meu objetivo nesse dia era conhecer Porto que se preocupa em botar os pés no tempo presente.
Mas antes, pergunto ao atencioso Sergio: se tivesse um único lugar como referência nessa cidade, onde me levaria? “Estação São Bento”, veio de bate-pronto. E, ele tinha sim, suas boas razões. Construída no antigo Convento de São Bento de Ave-Maria, um espaçoso átrio abre as vistas para painéis ornados com mais de 20 mil azulejos pintados por Jorge Colaço que retratam os acontecimentos da história e da vida portuguesa. Nas plataformas de embarque um display assinalava: Guimarães 10h45. Para mim mais que um aviso. Foi nessa cidade que nasceu Portugal.
11h – Terminal de Passageiros do Porto de Leixões
O novo cais já é um ícone arquitetônico da cidade. Projetado pelo arq. Luís Pedro Silva, sua construção se integra de forma convincente à paisagem natural. De imediato me fez pensar num grande rolo de fitas sendo desenrolado, em que cada ponta se torna um braço criando outros espaços aquáticos. O prédio impressiona pela grandiosidade. A presença constante dos raios de sol que entram pelas enormes janelas e distribuem a luminosidade sobre o revestimento interno de azulejos brancos, não planos, lembram escamas de peixe. Estes reluzindo com a iluminação solar criam um caos visual que se funde com a luz incidente nas águas do Atlântico, e me davam a ideia de estar na superfície da água.
Muito mais que Terminal de Passageiros, Leixões abriga um espaço reservado à ciência, onde se instalaram unidades de investigação com vocação marítima da Biologia à Robótica. O último piso e terraço estão determinados para eventos e exposições.
13h – Serralves, Museu de Arte Contemporânea
A Casa Serralves, belo exemplar da arquitetura art décor, jardins desenhados pelo francês Jacques Gréber, e o Museu de Arte Contemporânea, projetado pelo portuense Álvaro Siza, vencedor do Pritzker de 1992, fazem dessa Fundação um centro de arte que se rivaliza com a da Gulbenkian, de Lisboa. Sorte de Portugal ter essas instituições que pela qualidade do acervo e da sua programação se dedicam ao enriquecimento cultural de seus visitantes.
A coleção de Serralves acolhe mais de 4.200 artistas renomados internacionalmente, como Richard Serra, Anselm Kiefer ou Bruce Nauman, e de portugueses, entre eles, Pedro Cabrita, Lourdes Castro, Paula Rego.
A tendência atual da arte contemporânea também é expor em jardins obras de artistas que se harmonizam no espaço. Na minha visita, duas obras do artista indiano Anish Kapoor faziam parte desse conjunto paisagístico; já na Casa Serralves, havia uma exposição dedicada a Joan Miró – “A Morte da Pintura”.
Para absorver o máximo desse espaço cultural, e tendo como cenário os jardins, decidi almoçar no restaurante buffet da instituição. Meu faro para acertar as escolhas continua afiado. Tudo de bom, e com preço justo.
17h – Casa da Música inspira emoções sonoras e imaginativas
Será que o arquiteto holandês Rem Koolhaas, ganhador do Pritzker, de 2.000, se inspirou numa gigantesca caixa de som para desenhar a Casa da Música? Mas o que me impressiona nesse arquiteto é sua diversidade. Ele pertence a uma linhagem rara daqueles que aceitam ser contratados para desenhar um banheiro público, ponto de ônibus, ou megaprojetos, como a Biblioteca Central de Seatle, Estados Unidos, ou ainda essa espetacular obra que é a Casa da Música.
No decorrer da visita, ciceroneado pela sra. Cândida Lopes, pude observar a monumentalidade de seu interior com vários espaços musicais, e que tem como característica principal “a continuidade visual que se estabelece não só entre o interior e exterior. Uma relação de mistério que provoca os sentidos, uma sensação de caixa de surpresas (olha aí! Pelo menos na minha ideia inicial de caixa, acertei) que acompanha o percurso do início ao fim”, como o folheto a descreve.
Convidado, pena que não pude assistir a um dos concertos que ali seria realizado às 19h. Portanto, considere quando no Porto conferir sua vasta programação mensal de shows e musicais.
18h30 – Aeroporto Francisco Sá Carneiro
Durante o trajeto até o aeroporto observava o máximo que podia o diálogo entre prédios, ruas, jardins e as pessoas, e me surpreendi pela fascinante mistura de tradição e modernidade do Porto. Se cheguei aqui por uma simples frase de Saramago, deixo essa cidade com outra: “… é preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta logo”.
Mais sugestões em:
www.portocvb.com
br.visitportoandnorth.travel
Considere quando ir:
Vila Galé Porto Ribeira: Cais das Perdas, 17
Livraria Lello: Rua das Carmelitas, 144
Mercearia Pérola do Bolhão: Rua Formosa, 279
Manteigaria e Delta Q: Rua Alexandre Braga, 24
Casa Claus: Rua das Flores, 22
Cervejaria Brasão: rua Ramalho Ortigão, 28
Rota do Chá: Rua Miguel Bombarda, 457
Casa da Guripa: Tr. de Angeiras, 20, Lavra
Estação São Bento: Praça Almeida Garret
Terminal de Passageiros de Leixões: Cais Sul do Porto de Leixões
Casa Serralves: Rua. D. João de Castro, 210
Museu da Música: Av. da Boa Vista, 604
Door to door service (táxi sr. Sergio)