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Madagascar, o insólito a cada passo

Desejo encontrar, quando viajo, tudo o que esperava, só que para melhor ainda. Também quero topar com o inesperado, desde que suscetível de controle. E uma das regras que considero importante para bem aproveitar o destino é o juízo de valores. Evito fazer comparações, pois às vezes a realidade surpreende até as ficções mais ousadas. E foi exatamente isso que aconteceu em Madagascar.

Baobás são sagrados na ilha. Ao redor de seus imensos troncos os jovens malgaxes começam aprender as primeiras histórias de seu povo
crédito: wikipédia

Não me contaram, eu vi. A ilha de Madagascar é um elogio à diversidade. Fica um tanto fora de mão, a leste da África, mas de longe ganha em exuberância. Uma arca de Noé à deriva há 160 milhões de anos, onde plantas e animais seguiram uma evolução autônoma. Sua natureza é síntese perfeita das mais belas paisagens do mundo, e a flora, única. Das 12 mil espécies existentes, 9,5 mil são endêmicas. Para se ter uma ideia dessa multiplicidade, em todo o continente africano só existe uma espécie de baobá, enquanto que na ilha são sete tipos.

Quando o assunto é geologia, Madagascar também é a bola da vez: um verdadeiro museu de mineralogia com destaque para a prata, ouro, níquel; gemas semipreciosas, como topázio, água-marinha, jaspe, ônix, celestite (de um azul suave), turmalinas em tons diversos, zircônios, cristais, e ainda o especial âmbar.

Lêmures
Típica cena em que o toque de natureza faz a viagem subir de patamar
crédito: viramundo e mundovirado

Mas, nessa natureza plural e singular na qual todas as ciências querem fazer as honras da casa é a zoologia que sai na frente e ainda reforça um ambiente de fábula com os lêmures – os mais encantadores animais que já vi! São trinta espécies que vivem em toda a ilha, desde o maior e o mais elegante dos lêmures, o indri, com seu característico grito humano e que pode ter a altura de uma criança de cinco anos. De pelame branco e negro, se locomove saltando lateralmente com grande impulso de até 10 metros de distância. É quase coreografia, bela e especial, me sugeriu um bailado.

Outro hóspede gracioso da floresta é o lêmure sifaka, com penugem branca e máscara negra sobre o nariz. Além deles o catta, com uma longa cauda anelada de branco e preto, e os encantadores pequenos lêmures noturnos, verdadeiros gnomos da floresta.

Mulheres de costas numa praia de Madagascar
As cores vivas, as belas praias e o jogo de luzes contribuem para enriquecer a identidade visual das malgaxes
crédito: viramundo e mundovirado

Cruzo o país até chegar à cidade litorânea de Tulear, sul da ilha. Porém, meu olhar inaugural dá com uma bunda, uma não, duas ou três. Todas acocoradas numa bela praia fazendo cocô. Mas, o que é isso? Que merda! Desisto do meu passeio pelas areias e me dirijo para o centro do povoado. Na primeira esquina outro sobressalto: um homem impávido também fazia cocô na calçada. Não adiantou mudar de caminho porque sempre encontrava homens e mulheres, tranquilamente, fazendo suas necessidades à vista de todos. Um mal súbito intestinal rendeu a cidade? O proprietário do hotel riu de minha cara incrédula ao voltar do breve passeio. Explicou-me que a etnia da região não admitia banheiros em suas casas, considerados tabus e locais de maus espíritos.

O chapéu identifica uma das 18 etnias malgaxe. Lógico que comprei um!
crédito: viramundo e mundovirado

Outro lugar, outro choque. Desejando aproveitar a luz dourada do amanhecer, saí às pressas do hotel a fim de fotografar os arrozais. Para compensar a falta do café da manhã, tirei do bolso uma barra de cereal para comer enquanto caminhava. Não havia muita gente, naquela hora, na rua. Mas logo percebi que a hospitalidade não era o ponto alto daquele lugar: olhavam-me com cara fechada e muitos mudavam de caminho para não cruzar comigo. Será que estou com berebas? Intrigado, me senti inseguro e voltei para o hotel. Novamente o porteiro veio me salvar. A culpa era da barra de cereais, pois a etnia dali não admite comer nas ruas, em público. É total falta de educação.

uma vila de adobe
Nao sei por quê, mas as vilas malgaxes me pegaram para sempre. Simplicidade, talvez. Mas foi pela hospitalidade que esse povo me cativou
crédito: viramundo e mundovirado

Trafegando entre contrastes absolutos em Madagascar, onde o povo malgaxe, um dos mais cordiais que já conheci, subdividido em 18 etnias (todas identificadas pelo modelito do chapéu), encontrei um mundo inusitado e rico de sensações. Mesmo com algumas desagradáveis surpresas, a viagem não alterou o meu prazer das descobertas, e se tem um lugar no mundo que pretendo retornar em breve é Madagascar.Ilustração cajuzinho usada como ponto final das matérias da vmmv

Família na porta de uma casa
Para mim quase uma cena bíblica. Que saudade de Madagascar!!!
crédito: viramundo e mundovirado

*Matéria publicada originalmente no nosso blog Viagens plásticas do Viagem Estadão

ViramundoeMundovirado
"Viajamos para namorar a Terra. E já são 40 anos de arrastar as asas por sua natureza, pelos lugares que fizeram história, ou pela cultura de sua gente. Desses encontros nasceu a Viramundo e Mundovirado."

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